Pernas

Não sei porque escolhi esse toque para o telemóvel, detesto essa música, nunca gostei dessa música, sempre odiei essa música e ainda por cima hoje essa música me irrita mais. Outro trabalho fora de horas em horas de trabalho comum, de gente que trabalha num escritório ou mercado ou bar ou consultório ou hospital ou restaurante ou outro trabalho qualquer que não esse que tem, sempre fora de horas em horário impróprio. Escolheu a profissão e não o expediente e tem essa tendência dependentemente mecânica, involuntária em atender o telemóvel para que a música estupidamente irritante se cale e não perca mais um trabalho. Estou!! Num estou alongado e meigo e doce de voz de mulher em trabalhos de telefone ao telefone, mais um serviço de merda, é a própria, quem fala, sim, cento e cinquenta a hora mais deslocação, no Intendente encontra mais barato sem incómodos ou segurança, fica a seu cargo, meu caro, e qual a morada?, sim conheço, às duas, tudo bem, até já. E já está a tarde toda arrumada que tudo foi pelos ares e o passeio ardeu, o centro comercial com amigas e o café também ardeu e agora é desmarcar tudo mas ainda pode-se ir ver aquela máquina de lavar roupa que faz falta, na loja de electrodomésticos próxima a praça dos taxis, que essa máquina já deu o que tinha e não tinha e agora não tem concerto, tem que ser trocada, que mete nojo isso aí ao canto da cozinha a deitar água e coisas pra fora. Ainda tem esse tempo mas escoa-se mesmo mais agora. Arranja-se sem roupas de trabalho, que cintas e meias e mini-saias de cabedal encarnado ao rubro denunciam a singeleza e subtileza do labor, que prefere uma roupa mais apropriada a discrição da pessoa que inspira atenção, aleijada que precisa de ajuda na carreira de autocarro que na outra carreira já está encaminhada com sucesso, com a farda na mala, procura a bengala que lhe ajuda com a prótese que não se percebe quase, que vai da anca até ao fim, que é tudo falso, dali pra baixo é fibra ou plástico ou pvc ou seja lá o que for que madeira não é, e há até convites para filmes porno-bizarros de mulher decepada em bacanais com amigas anãs ou super-obesas, sem braços e olhos de vidro, mutiladas várias a caminho da Holanda. Bom dinheiro, dinheiro certo, mas perde-se o sigilo da identidade que é a sua cara, seu rosto, sua face, que é o que lhe resta, e seu pai é um depravado e pode vê-la com amigos das cartas nos bares que vai e lá se vai a faculdade e a saúde e os dentes que custaram muitas horas de cama e cadeira para arranjar numa desculpa de desconto para estudantes ou cartão jovem, paga-se quase nada, mãe, e acreditaram que devia ser assim, que o dentista era bom, bom e porco, que sujava-se consigo mesmo e lambia-se e argh! Que dá nojo lembrar.

Foda-se, vinte pras duas, não convém atrasar-se, são tempos contados ao minuto esses dessas horas, senhores doutores engenheiros em horas de almoço da libido assanhada do bife à cortador e Dão de reserva de a cinco anos, e para onde vai a menina? E seja rápido, por favor, a menina manda e deixa que eu ajudo com as canadianas, obrigado, e são bonitas, obrigado, e o hotel barato como convém não possui elevador e pelas escadas maquia-se e encontra uma porta aberta dum quarto aberto e entra e troca-se e deixa sua falsa perna de pé num patamar e vai trabalhar numa canadiana lindamente talhada pelas mãos dum amigo compadecido com entalhes em flor que ninguém nunca viu por serem suas, na porta do quarto com sua excelência já quase despida sobre a cama já aberta, quase desfeita para a porcaria. É observada como sempre é observada pelo peculiar retracto barroco que faz de si própria e enche-se de vergonhas nessa hora, já toda nua e despida de perna, da perna que perdeu quando ainda era mulher completa e nova num afoito brincar na quinta de cavalos dum amigo do avô quando caiu e foi pisada pelo animal no meio da merda do animal e demoraram muito com a gangrena e tudo e cortaram a perna direita, mas ainda lembra-se dela em cócegas ou quando deitada depois do serviço como agora, quando vê-se incompleta, uma bela boneca partida sobre a cama como que esquecida e suja. No quarto de banho limpa-se e reconta o dinheiro contado para mais uma prestação do financiamento do carro topo de gama com devidas alterações de pedais que não é inválida, vale mais por ser estragada e contém a lágrima do hábito pois tem exame de línguas mortas dois amanhã e é preciso calma para estudar que já foram duas horas de trabalho em meia hora de serviço, pouco mais, são trezentos que deve depositar amanhã quando for para a faculdade.

Refeita, com um cálido sorriso pungente de liberdade descendo os degraus, descendo ao patamar, repara que sua perna falsa e estúpida, desapareceu, sumiu, foi-se por onde não sei que o recepcionista míope não viu com o senhor doutor nada do tipo, envergonhada e perneta questiona a camareira que não sabe que nem no patamar esteve, que esteve em descanso na lavanderia desde o meio-dia, que ela deve ter saído sozinha, com vergonha do corpo usado que a usa, indigno de perna de qualidade como aquela que agora deve estar num café no Chiado, caralho, que não tenho sorte nenhuma, a ver as montras e as pernas das meninas novas na calçada enquanto toca aquela música irritante que irrita, aquele toque que odeia mas não troca, do seu telemóvel pedindo serviço a vibrar, mais um esta tarde, foda-se, mas os livros custam dinheiro e o carro bebe e a casa gasta e as roupas e pelos vistos há de vir outra perna de plástico ou pvc ou fibra a fazer par a outra passarinheira que por aí deve andar saltitando. Segue sem mais se queixar, sem ir pra casa que é sempre a aviar aviando os prazeres esquisitos do libidinosos loucos por mulheres desfeitas como esse, que vai montando uma bela boneca de putas partidas onde faltava uma perna direita que já não falta mais.

Antonio Antunes
Enviado por Antonio Antunes em 30/06/2006
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