A fábrica de anjos do puteiro

De todos, foi a única sobrevivente. Carregava o estigma do corte da rotulação: filha de puta com dono de puteiro! A estigmatização do status negativo simbolizando a vergonha que leva à discriminação social. Mas era como “...a flor de açucena / Que delicada desmaia, desmaia / Sob o peso do orvalho”

Os magarefes de alma, filhinhos dos fantoche de velhos coronéis políticos do interior - estudantes da capital –, viviam ansiosos por carne fresca. Para essas mentes assexuadas as férias era um frison: “Tá quase no ponto de corte”. Viviam na caça da meiga menina; disputavam-na como um troféu a ser exibido em praça pública:

- Quem vai comer primeiro a anjinha do Puteiro.....!? – Era assunto de rodas abastadas pelo sugamento do erário público.

Ela sentia na pele os olhares degustadores de carne viva – michada no lume da lama da segregação social. Sua alma era apenas uma tênue lembrança de morte para esses enfurecidos caçadores sexuais; figurantes de toda uma encenação de hipocrisia social – hoje, mais viva do que nunca. A honra das donzelas de família preservada enquanto os homens rasgam os hímens do outro lado social, em nome das posturas de macho.

Pode parecer anacrônico, nesse meio hedonista, mas, com meus dogmas priápicos ainda quase castos na arte da trepação, mantinha minha conversa com Angelina – “pequeno anjo” - sempre curta, quase às escondidas. O pai, além do cabaré “Buraco Fundo”, era também dono da única pensão da cidade. O que nos obrigava um contato constante com aquela flor; convívio diário com putas e bêbados do caís - encarcerados na jaula das sensações fisiológicas, sem plenificação.

Passava meu tempo vago contemplando seu semblante angelical; uma áurea enigmática em meio a essa confusão infernal. Disfarçava! O velho mantinha olhares astutos sobre qualquer comportamento alhures que se direcionasse a quebra da única honra da família. “Ai do filho da puta que botar as mãos nessa menina.” A velha espingarda sempre pronta, descansando no canto da alcova – um ambiente carregado de vida e morte. O boteco lotado; nos quartos, fornicação incessante em corpos de filhas alheias; na dele, nem sonhar!

Dia seguinte eu partiria, depois de dois ano naquela platônica admiração. Transferência para a capital. Zanzei pela rua até tarde. Na volta, um bilhete na rede prenunciava noite diferente: “Na mangueira, depois de meia-noite”! O relógio sem andar, uma eternidade. Lá fora, um mugido triste, passos apressados rumo ao rio – amantes da noite. O grito estrídulo do rasga-mortalha durante o vôo se fez ouvir - O primeiro...! Hoje não queria apenas roedores, necessitava de almas.

Senti o cano da espingarda na minha fronte; o desespero me tomando conta. Implorei-lhe. O dedo trêmulo no gatilho enquanto berrava palavras desconexas – Vingança da honra ultrajada! Ainda me olhou com piedade, considerava-me um bom partido; mas era homem de palavra. Ouvi ainda o segundo grito da coruja suindara enquanto o fogo da arma cuspia na minha cara. Acordei sobressaltado; havia cochilado um pouco.

Meia-noite! Um medo de morte infestando o quarto. O pensamento sem mais libido percorrendo o quintal da casa, buscando, sob a mangueira, a figura do “pequeno anjo”. Joguei as malas no carro, rumei para o pontão. Ainda deu tempo de ouvir o berro do velho no quintal:

- Tá fazendo o quê ai, Angelina... Passa já pra dentro! – Não esperei para ouvir o terceiro grito do rasga mortalha.

Não foi um reencontro dos mais alegres. Muito tempo já se foi. Ela, com a mesma candura de anjos. Eu, um pouco estropiado pelo tempo. Por um instante, o libido do passado parecia reascender-se nas minhas lembranças. Soube que não havia se livrado dos antropófagos de alma, fora seduzida por um comedor de gente; grávida, jogaram-na para os prostíbulos da vida – a honra da família havia sido quebrada.

- Agora estou bem. Sai da vida. Tô junta, tenho dois filhos. Meu homem é policial; trabalho numa empresa funerária....

E para o leitor não me dizer que preservo ícones de iconoclástia e que reivento o cotidiano, desconversei e fui saindo, prometendo vê-la mais vezes; claro que, propositamente, esqueci de pedir-lhe ou dar qualquer referência para contato

Segui olhando para o alto, querendo ver alguma coruja da noite, rasgando os céus; desta vez, nenhuma apareceu. Alguma coisa havia morrido dentro de mim naquele instante.

Até mais ler, pela preservação das “honras” da vida!

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 30/06/2006
Reeditado em 01/07/2006
Código do texto: T185171