Ela dorme

Ela dorme…

Ela dorme e por mais que não lhe pareça o sono volátil dela é contagioso. Ela dorme e ele boceja. Vela-lhe o sono e adormece em pé. Sai-lhe o sonho pelos poros, pelas narinas, pesadamente sem que os seus olhos a denunciem falsa, na cotidiana mentira fêmea do fingir-se fingida, dormindo. Míngua a falsidade e sabe-se. Ela dorme e estancado na porta do quarto ele anda com a cabeça às voltas noutro sonho.

Ela dorme e observá-la dormindo é sonhá-la acordada, ofegante, respirando pesadamente sobre um corpo dormente. É contagiante, profundo, vê-la dormindo tão profundamente. É, sentado no chão próximo ao leito, na cabeceira da cama, com as mãos ao peito, um pesadelo não acordá-la num beijo entre lábios. Calem-se, shiu!, não façam barulho, por favor. Ela dorme.

Ela dorme nua, com um lençol dum transparente leve e branco, quase pérola com seu brilho opaco. A silhueta do seu corpo emoldurado pela cama pendente, um pictório infortúnio punjente em declínio num difuso monte pubiano saliente, naquelas encostas alvas, seus peitos mornos, suas pernas longas, seu corpo claro em pele branca, suculenta. É um delírio covarde vê-la indefesa, entregue à volúpia indecente de um observador inodoro, incolor, apaixonado e insano, que admira o pulsar saliente de suas pequenas veias azuis em seu pescoço indelicado e provocante.

Ela dorme e uma lua quarto-crescente aumenta-se em seu antro. Ele passeia de meias cogitando quais sons ela faz em quais sonhos, quais respirares em quais pesadelos, quais pulsares em quais desejos. Vagueam-lhe as idéias sobre aquela mulher que dorme profundamente naquela cama, sob seus adormecidos olhos de espera. Profundamente aquela dorme, sustentando, vez por outra, uma angustiante apinéia provocante, uma expiração sonora e contínua até ao limiar da inexistência ruidosa dos ventos seus. Ela dorme ruidosamente em silêncio.

Ela dorme e continua adormecida enquanto agem os ponteiros do relógio. E, vez por outra, um ténue sibilar asmático clama as atenções de seu espectador distraído, perdido em devaneios originais vendo-a despida de idéias. E aos poucos um soluço completa outro em pequenos espasmos breves trazendo-o atento para perto do leito. Contrai-se sem intensidade na intenção de uma pequena dor no ventre fresco. Mais outra sucedesse em pouco tempo, e outra repete-se pouco depois. Ele concentra-se nela, vendo-a transpirar, corando. Um pesadelo, talvez. A respiração ofega. Retesa-se um pouco mais num espasmo mais distante e prolongado que lhe agita as têmporas.

Ela dorme agora num dormir intranquilo, cansado, confuso. Ele apressa-se de um lado para o outro por entre o breu claro nocturno do quarto, pulsando também mais o seu coração numa ânsia egoísta, num contar segundos em espera. Ela contorce-se despropositadamente. Sente alguma dor? Teme? O que sabe? O que quer? Acordará? Morde os lábios e cerra os olhos cândidos numa perpétua inexpressão. O torpor da vigília desaparece por completo. Observa-a curiosamente, analizando a perfeição daquele lindíssimo corpo em agonias de mulher. As belas formas dos músculos contraídos, das coxas deformadas pela força extrema do pesar, das mãos agarradas aos lençóis da cama e ele ampara sua aflição no suspirar impaciente dela.

Ela dorme desacordada, aflita, desapercebida em azares, sem ares que lhe faltam e ele toma-lhe o pulso tenso que falha, toma-lhe a vida esvanescente num palpitar, toma-lhe a alma num segundo ausente. Um profundo suspiro, um silêncio inaudível, uma calma demasiada. Enfim… Ela já não dorme.

Ela já não dorme e, aliviado, ele toma do telefone, toma dum gole dum copo sobre o toucador, toma dum canhenho de apontamentos nefandos, toma fôlego... Liga, bebe, escreve e fala com a garganta fresca numa voz macia... Está feito… Sim, te vejo mais tarde… Também te amo…

Ela morre mas ainda sente o sabor acre do veneno na garganta ao fechar da porta.

Antonio Antunes
Enviado por Antonio Antunes em 01/07/2006
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