Adiós, Mercedes

Houve um tempo em que, mirando o mar e o outro lado dele, e olhando para o norte e seu “way of life” com seu estranho encanto vazio, virávamos as costas à nossa América, a latina. Despudoramente a chamávamos de “América Latrina”. Quem sabe, o fosse, com sua profusão de repúblicas das bananas, ditadores caricatos (se você se espanta com a postura de palhaço grandiloquente do Chaves, é porque não viveu naquela época) e soldadinhos de chumbo, protagonistas de erros homéricos e fingindo ser estadistas, ditando as regras de países que não conseguiam ser nações.

No Paraguai, onde imperava a ditadura de opereta de Stroesner, com seus soldados descalços, a única coisa que se ouvia nas rádios eram canções enaltecendo a “pátria” e seus feitos, a Argentina declarava guerra à Inglaterra e matava seus cidadãos, o Chile promovia uma matança de crueldade indiscritível, o Uruguai embarcava na canoa furada do totalitarismo militar, chegando a ter cinco mil presos políticos, e o Brasil fazia parte dessa salada envinagrada, cujos nós somente agora são desfeitos. Isso para ficar apenas no ConeSul da América.

No auge dessa balbúrdia totalitarista, fui apresentado a Mercedes Sosa. Não pessoalmente, mas às suas canções. Virei-me para nosso continente e meus olhos mudaram: os países não eram, e o Brasil não o era, caricaturas de seus dirigentes, mas havia sangue pulsando nas veias, havia esperança iluminando as almas, havia coragem nos peitos e nas vozes. E era a coragem na voz que me ligou para sempre a Mercedes Sosa. Sua voz forte sabia ser suave, mas, mesmo assim, exalava coragem e sede de justiça. Era vigorosa, igual a sua figura, que parecia imensa, mas acho que era baixinha; igual aos seu tambor índio, que fazia tremer os alicerces do conformismo.

“Duerme, duerme, negrito”, embalava o sono, mas a voz ficava contundente ao lembrar, no meio da canção, das condições da mãe: “Trabajando duramente, trabajando, si”. Cantava de forma messiânica e não abria mão de um repertório comprometido, mesmo em épocas de avalanches de alienações na música. Isso ficou bem claro na gravação do hino/declaração de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle: “A mão que toca um violão, se for preciso, vai à guerra...A voz que canta uma canção, se for preciso, canta um hino”.

“Salgo a caminar por la cintura cósmica del sur”, começa a “Canción con todos”, de Armando Tejada Gómez e César Isella, o Hino Continental da América, imortalizado por “La Negra”. Juntamente com “Gracias a la vida”, de Violeta Parra, enche de emoção nossa Latinoamérica. Emoção por tê-la conhecido. Dela guardo muito mais do que alguns LPs riscados.