QUEM ME NAVEGA

Talvez seja porque só tive visão do mar na adolescência. Fico ali, toda vez, menino boquiaberto vendo mulher nua inaugurada. Se eu embalasse bem, se tomasse impulso, poderia saltar à outra margem das águas. Então tenho de explicar ao menino as diferenças entre o mar e o rio da infância. Esse mar aí não se salta nem com cipó muito longo, nem com embalo de tábua. Também não se atravessa a nado, nem em tronco de cedro. E essa mulher é apenas para a imaginação. Me espelho no mar e me acalmo. Mulher nua na fantasia do menino remansa seus instintos na solidão. Olho a grandura do mar e sereno a vida.

Barcos e gaivotas namoram na cama das águas. Quero explicá-los, uns pelos outros. Os olhos vêem, o cérebro vai criando redes. As causas, os efeitos, as relações das coisas precisam entender-se em tramas. Entendo as gaivotas seguindo os barcos, acho ser por fome de peixes. Elas se fazem brancos bandos, misturam-se às nuvens, seguem os barcos por fome de peixes restos. Porque barco de pesca não se contenta com pequenos. Os pequenos deitam-se fora, eu vou explicando, e as gaivotas seguem os barcos fartando-se de pequenos. As gaivotas seguem o barco, o barco pesca. Tudo explicado. Quando deixo explicações, o imenso se torna apenas bonito. Parando de explicar, o mar volta a ser um rio pulado com um cipó bem grande. Ou uma mulher nua pela primeira vez nos olhos. O deslumbramento sempre faz idiotas, menino e homem. Mas eu entendo as gaivotas querendo restos de peixes atrás dos barcos. Assim eu explico.

Quando um velho pescador, já sem forças para o mar, chega com sua tarrafa, me flagra olhando mulher nua pela fechadura. Bonito o mar, me diz. Bonito, sim senhor. Mais bonito são gaivotas seguindo barcos. Parecem auréolas em cabeças de santos, eu quase disse. Fechei a boca. Menino deslumbrado não singra a sensatez. O rapaz se engana, me disse. O rapaz não entende nada de mar, falou como quem provara todas as mulheres e vê um garoto mareado olhando a primeira. Gaivotas não seguem barcos. Barcos é que seguem gaivotas que seguem cardumes. Onde estão as gaivotas estão os peixes, sabe pescador com jus ao nome.

Menino deslumbrado baba o mar e sua oceânica ignorância. Por isso a gente não entende a vida. Nem sempre o que existe é o que parece. Nem sempre o que parece é o que se instaura. Barcos seguem as gaivotas e não as gaivotas aos barcos. Explicando muito, pouco se aprende. A vida me respinga o rosto em pedaços de ondas. Pretensão de ser donos do mundo se derrota com uma onda gigante como na Ásia. Somos nada. Gaivotas não seguem os barcos, barcos seguem as gaivotas. A vida, senhora de nossa alforria, a mandos não se curva. Um dia um menino despediu-se do riacho lá no longe por tempo e por terra. É preciso entender-me. Não fui eu quem deixou o rio, foi o rio quem me deixou. O rio tinha o rumo do mar, eu tinha metáforas.

Teremos adestrado nossos destinos? Portaremos a bússola das escolhas? Será que não olhamos a vida com olhos embaçados de explicações? Achar que as gaivotas nos seguem é um olhar pretensioso de quem é barco e se crê timoneiro, de quem se acha mar e é pescador. Pescador experiente sabe seguir as gaivotas, que seguem os cardumes, que seguem as correntes do mar.

Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar. E ele quem me carrega como se fosse levar. A rede de meu destino parece a de um pescador. Paulinho da Viola é um filósofo de justo nombramento.

Pablo Morenno
Enviado por Pablo Morenno em 01/07/2006
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