Vinho tinto, Beatles e nada mais...

Sentei naquele banco giratório do boteco da estreita rua de pedras. Passavam das nove da noite. A fina e gelada garoa que despencava das nuvens cinzentas completava um clima romântico e ao mesmo tempo triste, em conjunto com as luminárias amarelas dos postes da rua central. Havia um fraco, porém intenso nevoeiro que deixava tudo ainda mais bonito. E triste. Corri os olhos pelo ambiente. Havia, naquela hora, somente um bêbado com os olhos fechados de quem dorme um delicioso cochilo e o pescoço ligeiramente tombado para a esquerda e um cão molhado abaixo da mesa. Tremia de frio. Fitei o quadro preferido, que estampava Janis Joplin e seu Porsche de pintura psicodélica. Demorei-me analisando-o. Na velha vitrola, um disco que girava em vão. A agulha já havia chegado ao fim, perto do sulco central do LP. Não sei que disco era, mas o aparelho era um modelo bem antigo. Ouvia-se então um baixo ruído. Tirei a jaqueta, com o logotipo da 'Harley-Davidson' na costa, levemente encharcada e coloquei sobre o banco de madeira próximo a porta. Corri os olhos no balcão que, entre conservas de salsicha, pimenta, cebola, pepino e um pote de amendoim torrado, abrigava alguns cinzeiros transbordando bitucas e um copo vazio de cerveja, com a espuma ainda no fundo, denunciando que alguém acabara de ir embora. Bem na minha frente, na madeira envernizada do balcão, haviam gravado, provavelmente com alguma chave ou outro objeto pontiagudo, o seguinte testemunho: "Passei por aqui, bebi e parti... Adeus - 1997". O silêncio finalmente foi quebrado: 'Licoroso?'... Levantei os olhos e respondi: 'Duplo. Tinto'.

'Que é pra espantar o frio, presumo", disse o homem por trás do balcão, vestindo uma camisa social de um branco quase impecável, não fosse a mancha de café - ou vinho, na altura do peito. Pensando melhor, deveria ser mesmo café, já que o doutor o proibira de beber qualquer líquido que contivesse a mínima porcentagem alcoólica anos atrás.

'Sim! Está bastante frio. E esta chuva'..., respondi.

"Tabaco?", ofereceu-me o professor aposentado.

"Não, obrigado".

O copo tipo americano foi posto no balcão. O líquido escuro transbordava o recipiente, escorrendo pelas beiradas e marcando a madeira. Imaginei que com certeza iria ficar aquele círculo no balcão, e que se voltasse lá um mês depois, lembraria-me que estive lá tomando vinho ao avistar os vestígios do antes-líquido (agora sólido) na madeira do balcão. A pequena televisão P&B estava fora do ar. Fiquei olhando-a por alguns instantes. Não necessariamente sua tela, mas sim a armação em sua volta, coberta por uma camada - grossíssima, calculei - de poeira.

"É esta maldita chuva. Basta cair uns pingos que essa droga já sai do ar...".

Virei lentamente a cabeça, olhando a rua encharcada. Pensei que talvez a qualidade duvidosa (e sua tecnologia do tempo em que não se falava em tecnologia) do aparelho ou os antigos equipamentos da torre de transmissão não tivessem absolutamente culpa alguma pela falta de imagem da lendária televisão. A culpa deveria mesmo ser da 'maldita chuva'.

"Música?" (...) "Ei! Música?".

"Oh, sim. Por favor", respondi, continuando: "O que têm aí?".

"Nelson Gonçalves, Bienvenido Granda... hum, deixe-me ver, tinha outros por aqui...", disse enquanto percorria com a mão o interior de um velho freezer fora de operação há décadas. Mais improvável que o local onde guardava os discos, seria o conteúdo."Ah, sim, estão aqui...", exclamou vitorioso. "Tenho também Carmem Miranda, Mutantes e Beatles. O que vai ser?"

Mandei um 'The Beatles', em sotaque inglês carregado de encanto ao ver pela primeira vez, pessoalmente, a poucos centímetros de distância de meu nariz, um exemplar legítimo de 'Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band'. A capa do LP, conservadíssimo, trazia um selo amarelíssimo e desbotado, de uma loja da paulista 24 de Maio. Provavelmente, imaginei, provindo do Shopping Grandes Galerias. "Galeria do Rock?", perguntei com o dedo sobre o selo.

"Foi lá mesmo que comprei... na década de setenta... bons tempos!", disse o 'boteco-man', enquanto colocava o disco na vitrola.

A agulha deslizou suavemente pela borda do 'bolachão de vinil', e em segundos ouvi o maravilhoso 'It was twenty years ago today' inicial...

Permaneci ali, parado, com o copo meio cheio ou meio vazio na mão, viajando pelo passado. Bom, nada mais 'passado' que aquele lugar onde eu estava. Tenho certeza de que se vasculhasse bem aquele monte de papel e porcarias mais, acomodadas dentro do velho refrigedador, poderia encontrar dezenas de referências aos 'bons tempos', que acabara de escutar. Na verdade, concluí durante os pensamentos nostálgicos, que era um bom dia, ou melhor, uma boa noite para se escutar Beatles. Eu já não acreditava em muita coisa e estava sozinho, molhado e longe de onde realmente gostaria de estar.

"It’s wonderful to be here"...

A frase ecoou por minha cabeça e encarei como um sinal. Não que era maravilhoso ou extraordinário. Mas era bom sim estar ali, naquele momento. E com um 'público adorável': um bêbado, um ex-professor de história e um cachorro tremendo de frio.

A velha televisão continuava ligada e sem nenhuma imagem além de 'chuviscos'. Como a rua deserta. Fiquei ali. Sentado, ouvindo e pensando. The Beatles - pensei - ao lado de Mutantes e Nelson Gonçalves. Puxa vida... quem poderia imaginar isso tudo dentro de um freezer?

O homem embriagado levantou-se. Resmungou algo em minha direção, mas não consegui entender. "Desculpe-me, o quê disse, senhor?", questionei. Sua segunda frase foi um pouco mais clara: "Me dá uma pinga... não tenho mais dinheiro...por favor...e preciso muito...".

Impressionante era sua sinceridade, aliada ao enorme esforço para manter-se em pé.

"O senhor não prefere ir pra casa? Sua família deve estar preocupada, lhe esperando. Tome uma Coca-Cola e vá pra casa, meu caro...".

O homem por trás do balcão, de um sorriso estranhamente irônico e cabelos grisalhos-amarelados, virou-se para a vitrola e levantou a agulha. O som não estava alto. Não entendi então porquê fizera isso. O disco continuou girando no eixo central do aparelho. O silêncio que se instalou foi devastador. Ninguém falava absolutamente nada. O cachorro levantou-se e dirigiu-se à porta. Antes de sair, olhou para trás e abanou o rabo. Enfim, o silêncio foi quebrado pelo professor: "Mais vinho?".

Não respondi, apenas fiz um gesto negativo com a cabeça, e acenei com a mão, como quem quer dizer 'daqui a pouco, depois'.

Mais uma vez o homem embriagado disse algo em alguma língua imaginária, e eu fiquei boiando. Aproximando-se, apoiou-se no banquinho giratório e quase foi parar no chão, caso eu não o segurasse pelo braço. "Vamos amigo, tome um café ou um guaraná e vá pra casa descansar... está tarde e frio. O bar já vai fechar...". Pensei em levá-lo até sua residência, mas antes que pudesse dizer algo o dono do estabelecimento levantou-se e profetizou: "De nada adianta. Este homem quase não aparece por aqui. Quando chega, já está bêbado. Sirvo-o com uma dose qualquer da mais pura bebida e ele sempre adormece no mesmo banco. Não sei quem é, de onde vêm e pra onde vai. Nunca consegue conversar e explicar onde mora. Sempre vai embora deste jeito. Penso que nunca mais vai retornar... e então, ele entra novamente, cambaleante, pela porta e dorme debruçado na mesa...".

O homem alcoolizado, que aparentava ter entre quarenta e cincoenta anos, nos olhou demoradamente. Abaixou a cabeça e levantou-a novamente, tornando a nos olhar. Repetiu esta sequência de movimentos uma dezena de vezes aproximadamente. E então, murmurrou: "Obrigado, amigos...vou sair". E saiu. Levantei-me da cadeira e fui até a porta. Observei o 'ser-misterioso' prosseguir pelo meio fio, até dobrar a esquina e sumir. "Não se preocupe. Ele vai ficar bem...", garantiu o professor. "Não estou preocupado. Estou deprimido...", argumentei.

O homem virou-se e apanhou a garrafa de vinho. Encheu meu copo até a boca e disse: "Pois então, esqueça tudo isso. Beba seu vinho e ouça a canção. São dez pra meia noite e esta é pra nós...", disse sorrindo, enqüanto acendia um cigarro instalado em sua piteira marrom. Colocou a agulha de volta no vinil. E a vitrola reproduziu os primeiros acordes de 'With a Little Help From My Friends'.

F. Pinéccio

Itapira/SP