Surpresa

Morreram e, talvez, todos morrerão. A morte é algo de outro mundo que, vez ou outra, invade a triste vida das pessoas. Ela fica por poucos instantes e deixa um buraco, ora pequeno, ora enorme. O interessante é que mesmo sabendo do tal buraco da morte, quase sempre em que vemos um, acabamos caindo, feito um “Maria vai com as outras”. É trágico: todos caem como patinhos. “Sua professora de jardim de infância morreu”. Pronto! Escavaram o buraco. Mas, ela devia ser tão velha, quando estamos velhos, a morte sempre cai bem. Na época em que fui seu aluno, há uns 20 anos, ela já era uma avó: cabelos grisalhos e presos num coque, olhos esbugalhados e enormes e óculos maiores e mais redondos do que seus olhos. Não me lembro de como era seu corpo, me ocorre apenas o seu rosto de coruja anêmica tentando arrancar o abecedário de dentro de mim. Uma monstruosidade! Agora, imagino-a no caixão, ainda sem corpo, ele todo coberto por flores, talvez, rosas cor de rosa, uma beleza! Ela continua com o mesmo rosto, sem olhos, apenas duas linhas de cílios sob os óculos enormes. “Ela morreu”, me disseram. “Coitada”, alguém sussurrou. “Todos merecem morrer”, gritei baixinho.

Morreu também a vizinha do meu avô, uma mulher assustadora. Era baixinha, feito uma meia mulher, tinha o rosto meio enrugado e achatado e só um de seus olhos enxergava. Nunca consegui entender como é que ela via o mundo, enxergava apenas a metade de tudo? Qual metade seria? Era estranha, mas diziam ser muito boa e uma excelente avó. Nunca saberei ao certo. Afinal, ela morreu e quem morre não sofre mais dos males da bondade ou da maldade, está morta e pronto! Quase imortal. Agora, imagino-a no caixão, ainda com meio corpo e um olho cabisbaixo no centro da testa. Mesmo depois da morte ele continua incrivelmente aberto e provavelmente enxergando uma metade de tudo! A outra metade somos nós.

Além dessas, morreu também um tio e esse já deve estar meio fedido. Era um homem forte, animado e de um sorriso inabalável. Era pai de uma família loira e, estranhamente, morreu e deixou todos sozinhos. Esse deixou um buraco gigantesco e muita gente caiu e vai ser difícil saírem de lá. Sabe aquele tipo de pessoa que acha o escuro do fundo do poço mais aconchegante do que o sol da superfície? Foram essas que caíram. Coitadas! Mas, de certa forma, não posso condená-las, foi uma morte surpresa. Esse é um tipo de morte muito especial, se parece com aquelas festas de aniversário, só que no caso da morte, o aniversariante ou o morto não precisa fingir que não sabia de nada, porque ele realmente nem desconfia de que vai morrer ou envelhecer. Se não se tratasse da morte, seria algo muito feliz, felicidade surpresa é algo incrível. No entanto, na verdade, foi uma infelicidade surpresa, mas ainda assim incrível. Agora, imagino-o no caixão, apenas uma janelinha em um caixão de metal e parafusos. Pelo vidrinho enxerga-se apenas um par de olhos e um nariz redondo, o que sobrou do homem vivo. Afinal, não daria para ver muita coisa do escuro do fundo do buraco.

Todos morrem, alguns aos poucos, outros de uma vez só, como um relâmpago. E todos precisam sair do buraco e precisam aprender a pular buracos e aprender a morrer. Dito isso, é melhor começarmos a ensaiar as palavras do que já começou morto: “Me mataram, querida Wene”, disse o defunto Santiago Nasar.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 17/10/2009
Reeditado em 17/10/2009
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