Ônibus

O ônibus é definitivamente um verdadeiro laboratório de análise de gente. Não sei porque, sempre que embarco num coletivo, alguém curioso senta-se ao meu lado. Desde criança convivo com os tipos humanos mais curiosos. A galeria de personagens tem modificando ao longo do tempo. Antes via bruxas, gigantes, duendes. Mais tarde, artistas famosas (que ninguém conhecia) e sábios conselheiros (igualmente desconhecidos). Há algum tempo, o enredo modificou. Os atores também, mas as personagens mantêm-se praticamente as mesmas com outra roupagem. Os arquétipos permanecem os mesmos. São, na realidade, solitários (como todos nós) em busca de um ouvido capaz de entendê-los. Pessoas abandonadas, incompreendidas, geniais. Conhecê-las e conviver com elas durante alguns minutos pode ser uma experiência fascinante ou desastrosa. Mas uma coisa é certa: é enriquecedor.

Entre essa gente boa cuja existência compartilhei nas inúmeras viagens de casa para qualquer lugar, encontrei bêbados maçantes e melancólicos, mulheres a beira de um ataque de nervos (cineastas também andam de ônibus), gente traída e artistas natos. Nessa galeria os lunáticos não estão de fora. Um deles foi capaz de atrapalhar minha leitura (hoje agradeceria a ele. Ler em ônibus pode causar descolamento de retina). Estava sentado a esquerda do carro, imediatamente atrás do motorista, na fileira do corredor. Eu era um adolescente de camiseta e short, sossegado e lendo uma revista na santa paz. De repente alguém me pede licença (pelo menos esse era educado) e senta-se ao meu lado. Concentro-me na leitura. Li por alguns segundos até ser interrompido. Pois não é que o cara começou a me contar da morte dele. É isso mesmo. O homem tinha morrido e ressuscitado! Eu merecia ouvir aquilo! Provavelmente haviam rogado alguma praga em mim. O assunto da revista estava tão interessante... Mas aquele senhor era insistente e me chamava de moreno. Eu fingia não escutar, pois já pressentira a loucura do passageiro tão logo o vi. O cara era insistente e parecia determinado a atrapalhar minha leitura. Disse do túnel famoso percorrido pelos mortos (em todos os filmes esse túnel aparece), do paraíso onde passeou (Não sei porque não ficou por lá). Gostaria tanto de ter terminado minha leitura em paz... Pois ele era determinado e a todo o momento me interrompia dizendo: “Moreno, olha. Foi assim e assim...” Que cena surreal! Eu ao lado de um morto ressuscitado. Essa foi apenas uma das situações vivenciadas por mim. Acreditem. Houve outras piores.

Uma vez viajando de Teixeira de Freitas para Nova Viçosa, na Bahia, entrei num ônibus superlotado onde se carregava de tudo. Não consegui assento e fiquei em pé bem abaixo do teto solar. Devido ao calor, resolvi abrir o tal teto. Foi um esforço enorme. As alavancas estavam enferrujadas. Sem ajuda de ninguém e tendo de equilibrar as malas, consegui ver um filete de sol e sentir uma aragem muito agradável. Pena que por pouquíssimo tempo. A alegria realmente dura pouco. Segundos depois de aberto o teto solar, uma chuva dessas de verão (foi durante o Carnaval de 2001 ou 2002) começou naquele instante de quatro meses sem uma nuvem no céu segundo informações que obtive aqui em São Gonçalo. Chovia cântaros e somente em cima de mim. Tentava em vão fechar o teto. O que me restou foi pendurar-me nele. Parecia um atleta louco. As pessoas acotovelaram-se e deixaram um enorme espaço a minha volta. Com o meu peso consegui mover o teto. Fiquei mais alguns minutos em pé. De repente, quase todos os passageiros desceram. Finalmente sentei-me. Descansaria alguns minutos finalmente depois de 12 horas de atraso, de uma noite mal-dormida num hotel de beira de estrada recém incendiado e de uma discussão desagradável com o motorista de um ônibus muito confortável que recusou vender-me uma passagem para Nova Viçosa porque eu não havia notificado a empresa sobre o meu embarque. Fechei os olhos, espreguicei-me e bocejei como se estivesse em casa. Tão logo abri os olhos, uma visão belíssima ao meu lado. Uma morena dessas que só aparecem nos romances de Jorge Amado sentou-se ao meu lado. Que maravilha! Vou puxar conversa (pensei). Só deu tempo de dizer oi e ela responder oi. Alguém lá na frente do ônibus gritou: “Fulana, a gente vai descer é agora”. Ela simplesmente disse tchau e desceu. Com a velocidade de um raio, senta-se ao meu lado (na fila do corredor) um bêbado. Para completar a cena dois bêbados sentam-se nos bancos de trás e mais dois nos bancos da frente. Os cinco não paravam de gritar uma música horrível, cheia palavrões (depois passou a tocar em várias rádios no Rio de Janeiro e no Brasil afora). Eles agarravam-se aos balaústres do veículo e se dependuravam. Como estava na fila do canto, não conseguia sair do meu lugar. Caso conseguisse, de nada adiantaria. Eles corriam pelo corredor, viravam cambalhotas, riam, dançavam por toda a extensão do veículo. De repente todos eles desembarcaram. Respirei fundo. Finalmente descansaria. Outra mulher linda sentou-se ao meu lado. Estava sozinha e disposta a conversar. Beleza! Mais uma vez confirmei que a alegria dura pouco. Virei para ela e perguntei se já estávamos chegando a Nova Viçosa. Ela, extremamente delicada e solícita num sorriso lindo apontou a janela e disse já chegamos. Quando olhei para fora, vi meu primo com a esposa e os filhos me aguardando no abrigo para ônibus. Não deu nem mesmo para saber qual o telefone da moça de sorriso lindo. Ela não tinha telefone e não era da região. Desci do carro exausto e feliz por encontrar meus primos. Recebi os abraços e as boas vindas num dia claro e com a chuva já terminada. Até que enfim a paz... Estava pronto para uma nova viagem. Não vou contar da volta porque não aconteceu nada de interessante além de uma família que me adotou temporariamente e insistiu que eu comece tudo que eles compravam porque me achavam muito jovem e magro. Pelo menos dessa vez foi divertido e agradável. Comer é muito bom. Na realidade uma das melhores coisas da vida. Alimentar o corpo faz a mente trabalhar melhor e criar melhores histórias.

Por falar em comida, agora vou tomar um ônibus rumo à cidade do Rio de Janeiro a fim de comemorar o aniversário de um outro primo meu. Lá sempre há bolo com cobertura de claras cozidas. Prometo apreciar bastante o bolo. Quero dizer, prestar bastante atenção a tudo ao meu redor no ônibus e criar uma nova crônica ou conto. Quem sabe, hoje à noite, depois de um suco de abacaxi eu comece a nova crônica.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 20/10/2009
Reeditado em 11/06/2010
Código do texto: T1876733
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.