Paciência histórica

Wilson Correia*

Minha formação política foi de esquerda. Adolescente, na passagem dos anos 1980 para os 1990, descobri a virtude da indignação. Uma forma de postura diante da sociedade capitalista. Essa que leva os indivíduos a matarem um leão a cada dia revestidos de egocentrismo, de competitividade e na ânsia do lucro e acumulação. Isso na exploração do homem pelo homem, no consumismo, no vazio antropológico, na depressão existencial, da corrida em sei lá por quantos metros-dia para se concluir que só existem perdedores. E os pouquíssimos ganhadores não sabendo bem o que ganharam e qual o sentido de serem vitoriosos. Faz sentido acumular riquezas, matar-se por ela enquanto vivo, sendo que elas ficarão aqui por não poderem ser acomodadas numa urna mortuária?

Comecei a achar o capitalismo muito insano, embrutecedor. Um modo de produção da vida que desencanta o mundo, a vida, as relações humanas e torna todo homem um comerciante em potencial, um mercantilista até de coisas não venais. Um sistema que comercializa até a morte, tirando-lhe a possível dignidade ao transformar sua discrição e sutileza em rumorosa mercadoria. Não é o caso do cadáver de Michel Jackson, cuja carcaça ainda é usada para auferir cifrões? Que absurdo isso, penso comigo mesmo.

Nessa sociedade, queiramos ou não, temos de pensar o prático, o imediato, o problema à mão e resolvê-lo segundo os instrumentos socialmente produzidos, com centralidade para o dinheiro, esse novo deus material por cujo crivo passa tudo: as relações, os vínculos, os afetos, os projetos, os estilos de vida, os modos de viver, de ser e estar no mundo. Então, por conta de minha formação crítica e por causa dessa minha avaliação realista do sistema capitalista, foi como que natural o meu ingresso no mundo da política acompanhado por quem propunha a transformação do sistema. Aí me apareceu o Partido dos Trabalhadores (PT), a militância no Movimento Estudantil, os embates tantos em nome de uma postura anti-capitalista. E o curso de filosofia me deu bases teóricas suficientes para justificar minha posição, sobretudo os escritos marxianos.

Nesse contexto, encontrava-me trabalhando em uma empresa de produtos lácteos quando num belo dia apareceu-me o gerente do banco no qual mantínhamos conta, todos daquela empresa. E ele entrou na sala onde eu trabalhava vociferando contra o então candidato do PT:

– Não voto em analfabeto – era uma de suas argumentações.

Eu pontuei a ele que em termos de educação global nós nos educamos na vida: em casa, na rua, na associação de bairro, na igreja, no sindicato, na empresa, enfim, em todo lugar aonde podemos ir para encontrarmos gente, depararmos com idéias, teses, sistemas explicativos sobre a vida, o mundo, a sociedade, o modo humano de existir no tempo e no espaço. Finalizei minha fala a ele indagando:

– Você diz que o candidato do PT é analfabeto, então é fácil prá você aceitar um debate público com ele sobre a conjuntura atual de nosso país, certo? Se ele é analfabeto e você, letrado, então você já entra ganhando o debate...

Aí ele ficou muito espantado e me devolveu:

– Você ficou louco? Tô fora!!! Nem pensar...

De minha parte, fiquei rindo do espanto dele. E concluí que a escola é apenas um caminho ao humano para ele desenvolver-se como ser potencialmente educável. Dominar uma variante lingüística ou um certo ramo do conhecimento não representa, em si, boa educação. Nisso a escola da vida parece poder suplantar, e bem, quaisquer programas formais de escolarização.

Hoje, ainda não deixei de ser crítico do capitalismo. Vivo a incompatibilidade de gênio em relação a ele. Mas, na perspectiva da paciência histórica, reconheço que o governo do “analfabeto” está se saindo melhor que a encomenda. É duro para a elite letrada brasileira aceitar isso, mas um pouco de flexibilidade, boa vontade e senso de justiça o provará sobejamente. Enquanto nossa incompetência nos impede de construir um sistema que alie justiça e liberdade, a nós, egóicos terráqueos, cabe reconhecer o mérito do outro. Por uma questão de justiça, temos de admitir que, entre nós, brasileiros, nem tudo é fracasso. Pesquisemos um pouco e encontraremos o que comemorar. É entre a crítica e o reconhecimento que se consolida o melhor de nós, incluindo, aí, a virtude da paciência histórica: essa que pugna pelo melhor como forma de já irmos construindo o país que queremos para nossos filhos, para as futuras gerações. E quiçá essa nação que estamos construindo possa ser qualificada por liberdade com mais justiça... por que não?

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br