O time da França e a besta fera.

Apito final no Waldstadion, Frankfurt. Ele tirou o boné e o atirou na churrasqueira. Subiu uma labareda danada, quase que de imediato. Aquele boné verde e amarelo era altamente inflamável. Era de material sintético, coisa barata, não valia mais que as doses de caipirinhas que ele havia ingerido no tempo derradeiro do jogo. Deu a xingar todos os jogadores que a embriaguez lhe permitiu lembrar. Para ele, eram todos filhos da puta. Depois de fumar o último cigarro, mais calmo, ainda com a voz pastosa, pediu desculpas, apercebeu-se de que não estava em sua casa – era, ali um convidado, para assistir ao jogo. Eu podia rir, mas o Tierry Henry havia expatriado o meu humor bom. Disse-lhe que se considerasse em casa, que xingasse por mim também. Mas ele se recostou no parapeito do terraço, esticou um olhar para as luzes do outro lado do rio, silenciou-se e logo chorou, e assim tornou-se um elegante.

Poderia ser mais dolorido se perdêssemos para a Argentina.

Francês é quase sempre francês. O Zidane foi lá confortar o Zé Roberto, caído no gramado, desolado, ante ao Brasil eliminado. Vi nos jornais a forma elegante com que, após a Vitória, se referiam ao time dos brasileiros. Lílian Thuran disse que “mesmo perdendo o Brasil é melhor”.

A civilidade francesa fez-me recordar, por contradição, de um fato histórico. Durante a ocupação nazista a parte da União Soviética, quando os jogadores do Dínamo de Kiev foram presos e forçados a trabalhar numa fábrica de pães. Dentro do que era possível, jogavam um futebolzinho. Os soldados alemães, vendo a habilidade com que os Ucranianos tratavam a bola, resolveram desafiá-los. Perderam cinco partidas seguidas de goleadas e, tomados por sentimento de superioridade, pediram uma sexta partida como revanche. Fizeram uma seleção com os melhores jogares que puderam. No intervalo desse jogo, quando os cativos perdiam por dois a um, um soldado alemão ameaçou que se o time do III Reich perdesse, os Ucranianos iriam para o paredão. O placar final foi cinco a dois para o time de Kiev e um fuzilamento coletivo de um time que além de jogar um belo futebol, fazia pães.

Concateno esse relato, com um assunto que a imprensa não deu muita bola: o racismo impingido ao time do “Zizou”. A ultra-direita francesa, liderada por Jean-Marie Le Pen, diz haver negro demais na seleção e que o povo não se identificava com aquele time. O negro Lilian Thuram rebateu.

Aquele manifesto contra o racismo, lido pelo capitão da equipe brasileira, Cafu, e pelo capitão e mágico Zinedine Zidane, da equipe francesa, tinha endereço certo.

No Brasil, o racismo se guarda, é velado, tem vergonha de mostrar-se. Na França ele tem braços e mãos na forma de organização política. Aquele gol do Henry, ao menos momentaneamente, amputou a língua afiada da besta fera, que nunca quer calar.

Existem mais coisas em certas partidas de futebol do que a nossa “não vã paixão" possa alcançar.

É por isso que depois do caso passado, vendo além das quatro linhas, resigno-me.

Só lamento que a ressaca moral do jogo e algumas cervejas a mais tenha me desfalcado de um bom papo com um grande amigo que veio da “capitar”

Joel Rogerio
Enviado por Joel Rogerio em 06/07/2006
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