Janela do Quarto

Da janela do quarto se via toda a rua.

Estávamos no terceiro andar, e os transeuntes, despreocupados, deixavam escapar seus segredos e, como já disse o poeta, de perto ninguém é normal, é exatamente o que se constata.

Havia na rua gente de todo tipo passando, e, com a fértil imaginação de quem não tinha televisão, eu inventava a historia de cada um.

Um senhor seguia apressado, logo eu criava toda a situação que o levou àquele momento. Certamente seu chefe havia ordenado determinada tarefa, indicando o tempo limite para a satisfação, e ele tivera percalços impedientes de findar a ordem superior, e se apressava em dar retoques finais e pensar em alguma boa desculpa pelo não feito ou pela imperfeição.

Eu podia ver o chefe, vermelho de raiva, gritando palavrões e gesticulando, enquanto o nosso personagem se encolhendo na cadeira, com olhar de cachorro perdido, lamentando seu infeliz desempenho.

Logo na rua passa uma mulher, meticulosamente vestida dos pés à cabeça, com um turbante, comum nos anos setenta, um casaco de pele muito caro, uma estola e uma bolsa cravejada de lantejoulas. Devia ter uns cinqüenta anos de idade e andava segura, equilibrando-se no saltinho agulha e com passos curtos em razão da saia tipo tubinho.

Sua história, pensava observando-a, devia ser bem interessante. Estava chegando à sua casa após ter sido abandonada pelo namorado no meio do salão do baile. Eles teriam discutido por ciúmes que ela demonstrou por ele ter olhado com aquele olhar diferente uma mocinha qualquer. Discutiram muito. Aparentando querer uma conciliação ele a chamou para dançar, abandonando-a no meio do salão.

Uma fria lágrima correu-lhe o rosto, mas ela seguiu resoluta, por quilômetros a pé, de volta para casa. Havia mesmo um certo cansaço em sua expressão.

Uma criança pedalava com dificuldade sua bicicleta, com aquelas rodinhas atrás, enquanto o pai gritava frases de incentivo.

Esse pai devia ter uma história de vida também, e, pela roupa que usava dava para ver que não estava mais casado com a mãe daquela criança. Deviam ter se separado recentemente, pois ele era bem jovem. O rapaz devia ter saído de sua casa, e hoje provavelmente morava em uma pensão, dividindo o quarto com vários outros infelizes.

Assim, seguia vendo a vida pela janela e inventando o passado de todos os que passavam lá embaixo.

Tocou a campainha, minha mãe foi atender. Era o primeiro homem, que seguia apressado na rua. Queria oferecer uma enciclopédia e ela comprou. Fiquei cercando os dois enquanto ele insistia na venda. Ouvi barulhos no corredor e fui olhar pelo olho mágico. Na porta da vizinha a mulher que vestia o casaco de couro procurava algo em sua bolsa. Eram as chaves. Abriu e entrou, devia mesmo ser a vizinha.

A criança não estava mais na rua quando voltei. Será que seus pais estavam separados mesmo?

Surgiram outros personagens, mas sobre isso falaremos em outra oportunidade.

Almir Ramos da Silva
Enviado por Almir Ramos da Silva em 28/10/2009
Código do texto: T1892215
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