Azul

Com imensos olhos azuis cintilantes e inteligentes, nasceu e cresceu filha única.

Foi mimada, muito mimada. Sujou-se, mas cedo aprendeu que era feio, que havia milhões de bichinhos na sujeira (milhões ela não sabia o que era, mas, pela forma com que a palavra era pronunciada, adivinhava que era uma coisa terrível). Correr não podia, pois poderia cair e machucar-se.

Pular corda não sabia, mas também nunca deixaram que tentasse, assim como soltar um grito pelo prazer de gritar. Nunca lambuzou o rosto com caldo de feijão, nem brincou de fazer bolo com bolacha molhada ou qualquer dessas gororobas que criança chama de comida gostosa.

Amigos não os tinha, pois poderiam passar maus modos ou, pior, doenças. Seus brinquedos eram cuidadosamente escolhidos para que não houvesse o mínimo risco de se cortar, bater, de engolir uma peça. Constantes esterilizações eram rotina.

Passava os dias dentro de casa, afinal, o mundo lá fora era tão perigoso! Os imensos olhos cintilavam, mas sempre havia uma névoa de tristeza neles.

Numa de suas poucas saídas para o jardim, topou com uma lagarta numa folha. Assustou-se, como seria de esperar. Melhor: apavorou-se. Naquele dia, correu.

O tempo passou parado para a ela. Intenso para a lagarta a construir seu casulo. Dentro da casa, alguma coisa começou a mexer na cabeça da menininha e, talvez por instinto, talvez porque houvesse um chamado maior, passou a ficar à janela por longos períodos. Dentro do casulo, a transformação total e apertada.

Era um dia de sol e de chamado dentro do casulo. Era preciso sair. Em câmara lenta, um pedaço de asa, outro, do corpo e, em breve, dois leques azuis se mexiam onde antes havia cinza. O impulso de voar. E voou.

A menina, na janela, encantada, acompanhou o vôo da borboleta. Azul como seus olhos. Em algum lugar, alguém se perguntou: são seus olhos que refletem as asas, ou serão as asas que refletem seus olhos?

Voou até se confundir com o céu azul. E a menininha ali, com seus olhos fulgurantes. Ela ainda não sabia, mas, naquele momento, começara a germinar a semente da liberdade em sua pequenina alma.