TARDES IRRETOCÁVEIS

Hoje eu fugi com você bem no meio da tarde.

Na hora em que todo mundo estava correndo de um lado para o outro, tentando passar um fax, recebendo email, ligando para algum cliente maluco que insiste em nos atazanar. Enfim, peguei minhas malas e num bit estávamos deitados nas toalhas que esvoaçavam pelo dorso das costas. É tão bom fugir para algum lugar distante de vez em quando e poder sentir as energias sendo revigoradas em toda a sua plenitude. Parece que numa fração de segundo ganhamos algumas doses de juventude. Quem dera se isso viesse embutido nas garrafinhas do Yakult, que a gente compra caro nos supermercados, assim eu saberia o que exatamente eu estava comprando. Acho que seria bem melhor que os lactobacilos vivos que visualmente nunca fui apresentado. Certamente eu não hesitaria pagar o preço que cobrassem.

A areia da praia entre os dedos enfiados nos chinelos, o gosto de liberdade que a gente escutava vindo das ondas, dava uma sensação de que todos os dias poderiam ser domingos ensolarados para gente se sentar e perder à vista com tanta belezura. Daria para aproveitar o ensejo e escrever um livro inteiro de teorias sobre de como a vida deveria ser. Um livro não, dois e ainda escritos à mão - lembra quando a gente usava a mão para escrever? Lembra de como a gente parecia ser bem mais feliz tendo menos do que a gente tem hoje? Acho que só daí daria para começar o meu enredo de fugas no meio da tarde.

Te ver sorrindo me parecia mais um pagamento por algo que eu tinha feito, do que pleno merecimento. Só mesmo um louco como eu te convenceria a sair do meio da tarde, deixar o trabalho de lado e vir para um lugar desses cheio de luz, vida e tanta simplicidade como este. Eu fincaria a minha bandeira nesse dia e rezaria uma prece a Deus para ter o mínimo possível para ser bem mais feliz.

Acordar sentindo o cheiro do cipreste dançando ao balançar do vento, das ondas quebrando cedo na praia, da folha agitada na margem de espumas claras. Em algum lugar do mundo, meus pés foram fincados para eu viver num lugar assim.

Certas tardes são manhãs inesquecíveis.

Crueldade!

Num rompante de segundo meu telefone toca, me fazendo voltar para dentro da sala recheada de computadores frios e de gente roendo as unhas perante um atropelo de relatórios.

Meu chefe me estendendo duas horas de papel recheados de números e letrinhas psicóticas, quebrando todo o entusiasmo da minha imaginação e eu ainda tentando consertar a atenção com emendas parecendo com aquelas que a gente fazia nos brinquedos que quebravam, lembra? Com cola vazando pelas rachaduras e pela cabeça dos bonecos. Infelizmente eu estava errado. No meio da tarde, voltei para o trabalho, tendo que ouvir o meu chefe perguntar onde eu estava todo esse tempo que não o ouvira chamar.

Qualquer hora, eu juro que fujo com você para um lugar bem mais longe, para o meio de tardes irretocáveis.

Joel Thrinidad
Enviado por Joel Thrinidad em 30/10/2009
Reeditado em 06/09/2013
Código do texto: T1896042
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