O RESERVISTA

(Texto publicado no jornal Brasil Norte (RR) e sítio Fontenbrasil (DF)

João Pasqualino morreu. Morreu de morte natural para sempre, como dizia seu primo Abigobaldo. Filho de família pobre, Pasqualino morreu e ficou abandonado no Instituto de Medicina Legal. Causa mortis? Interessa? João Pasqualino não existia. Uma velha e amarelada Carteira do Trabalho e Previdência Social (CTPS) era tudo o que ele carregava no bolso. O corpo encontrado num varadouro sem marcas de violência fez com que presumissem morte natural. “Bota aí falência total de órgãos”, disse o médico legista, aborrecido com aquele defunto que surgiu justo na hora em que ele assistia a um Fla-Flu com amigos.

Depois dos procedimentos e formalidades, o legista descalçou as surradas e furadas luvas descartáveis, colocou-as de molho para lavar assinou uns papéis e voltou pra casa: pro futebol e cerveja.

O presunto, já apodrecido depois de passar dias na geladeira do IML, estava prestes a ser doado a uma universidade para dissecação quando Abigobaldo, que o identificou por fotos publicadas nos jornais, apareceu para reclamar o corpo e dar-lhe um enterro cristão.

Chegando ao Instituto de Medicina Legal, Abigobaldo foi logo atacado por pessoas desconhecidas que lhe passaram cartões e panfletos das funerárias “Juízo Final”, “Vida Eterna” e “Trombetas do Apocalipse”. Ele dirigiu-se ao balcão onde uma atendente feia e atarracada não tirava os olhos da televisão que transmitia um desses programas populares de ajuda sentimental(?):

- Boa tarde..., eu...

- Só um pouquinho...

- É que eu...

- Um momento, moço...!

Na interrupção para os comerciais, a atendente dirigiu-se laconicamente para o parente enlutado:

- Sim...?

- Eu vim pra identificar o corpo do meu primo que, segundo fotos nos jornais, encontra-se aqui na geladeira.

- O senhor já passou no Plantão Central?

- ????

- É tem que passar por lá, fazer um B.O. e trazer a guia que eles vão lhe dar... – E, ato contínuo, voltou-se para a televisão onde a apresentadora continuava a falar bobagens.

Foi dura e longa a via sacra de Abigobaldo: depois de horas na Delegacia, onde o escrivão preencheu formulários numa Olivetti Línea 88, o cidadão voltou ao IML para nova bateria de documentos. O catilógrafo do necrotério, tendo a guia trazida da Delegacia Central à sua frente, ignorava as informações apostas naquele formulário e perguntava dados do primo e do defunto. Abigobaldo, apesar de pouco letrado e muito humilde, ia se enfezando com a lentidão do atendente que operava a velha e surrada máquina manual. Mesmo assim, respondia às questões feitas: Seu nome? Grau de parentesco com o finado? RG..., o seu. Nome do finado... RG..., do finado. Estado civil..., do finado. Endereço residencial..., do finado, viu? Bens a inventariar? Logo uma pergunta a que o primo não sabia responder e que o indignou:

- Ele é reservista?

- Olha, moço, isso aí eu não sei... Agora, deixe eu lhe fazer uma pergunta: isso faz diferença? Existe a possibilidade de o defunto ser chamado pelo Exército Brasileiro ou, quem sabe, convocado para tocar harpa em alguma legião celestial?

e-mail: zepinheiro1@ibest.com.br

Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 08/07/2006
Código do texto: T189847