"Pedagogismo" e "Ciências da Educação"

“Deve ficar claro que a transmissão dos saberes e a aquisição da reflexão não têm nada a ver com a resposta a um convite de “amor”. (J.F.Lyotard)

O “pedagogismo”, o excesso de ciências da educação, sobretudo quando estas são mal assimiladas ou mesmo incompreendidas (como é o caso de uma autonomia aparente quanto aos seus métodos e objecto, que, efectivamente, são de outros domínios, como os da psicologia, sociologia, biologia, e mesmo das ciências da organização e da gestão), têm levado ao fracasso repetido das políticas educativas, na sua vertente teórica e prática. O verdadeiro núcleo da questão da educação deve começar por entender quais os fundamentos do processo de transmissão do saber e se eles continuam a exercer uma dinâmica de sedução ou se já não são capazes de provocar grande entusiasmo. A partir daqui, é urgente problematizar o papel da escola, como instituição, quais os princípios e pressupostos da sua intervenção, quais os sentidos que devem organizar as relações que se gerem entre todos os agentes envolvidos. A escola deve fundar uma consciência crítica, desde logo do seu estatuto e papel sociais. Ela é hoje objecto de uma “ revolução coperniciana”, perdeu o lugar do centro – os ideais iluministas esmoreceram -, confronta-se com outros canais e projectos de veiculação de práticas, experiências e saberes. A reflexão sobre a escola democrática deverá entender que a ela escapou a exclusividade institucional de aprendizagem e que se depara hoje, como nunca, com um contexto funcional de produção de discursos concorrenciais. Resta-lhe apenas uma certa nostalgia, mas que não deve obliterar propostas de uma nova vocação, reformulando os seus objectivos e finalidades ao abrir-se à complexidade social que a assedia nos seus fundamentos.

Perante a ideologia do utilitarismo, da aquisição de ferramentas capazes de cumprir programas de sucesso económico e tecnológico, perante o conceito de cidadania que se exprime, sobretudo, pelo cumprimento de competências hábeis à rentabilidade da produção e do desejo desenfreado de consumo, a escola debate-se com a dificuldade de aplicar o seu velho paradigma educacional às realidades emergentes, tarefa irrealizável e promotora da sua inutilidade. A crise é gerada no interior da própria instituição da escola pública e todas as medidas são apenas o prolongamento de uma incapacidade que se tornou endémica. A escola não tem sabido ler na profundidade os sintomas desta crise, tem ficado pela imediatez, arrastando consigo um desencanto generalizado. Tais medidas que têm sido adoptadas pelas políticas educativas nada mais fizeram do que prolongar um “mal-estar” sentido, globalmente, pelos agentes intervenientes no processo de aprendizagem. A escola actual é uma falência que exige uma reformulação do seu conceito e do exercício de novas práticas no processo de interacção social.

Evidentemente que a crise é generalizada, afecta a sociedade no seu todo, e não apenas de um modo conjuntural, mas estrutural. Contudo, a instituição educativa e o discurso pedagógico sentem-no de um modo particular. É a consciência desta sintomatologia que pode abrir caminho a novas vias de reflexão, propondo mais filosofia e menos “ciências da educação”, pelo facto de que estas, de um modo ou de outro, são sempre a expressão – raramente assumida - de determinadas correntes filosóficas (o positivismo) ou ideológicas (o cientismo). Mais filosofia significa então a assunção de um discurso aberto, crítico, argumentativo, capaz de interpelar a todo o momento as várias perspectivas em diálogo, capaz de recusar visões unidimensionais do homem, da cultura, da educação. Mais filosofia significa trazer para o âmbito da discussão o conhecimento, na sua tradução de pensar o impensável, “procurar teorias que representem o normal como inverosímil e o evidente como incompreensível, formular os problemas de um modo não habitual.” (Luhmann). Há que desocultar os sinais ilusórios e, como advertiu Heidegger, há que atender às potencialidades da suspeita para revelar “o próprio ser”. A filosofia, desde sempre, se posicionou como eixo de articulação com a pedagogia e por ela passou a identificação de algumas “feridas narcísicas” (Freud). Perdido o centro do cosmos, da criação da vida, da História, do “eu”, por analogia, também a escola hoje, insista-se, deixou de ser o centro de transmissão do saber, mas a sua possibilidade, mantém-se, nunca pela cedência, mas pela denúncia. O risco estará na recusa de assumir uma nova condição, de não entender a referida revolução coperniciana que a contemporaneidade já anunciou há muito. O discuro pedagógico exerce-se ao

potenciar o conhecimento, não como outro centro, mas como prática dessa tal denúncia crítica dos diferentes discursos, linguagens, experiências e práticas. A pedagogia deve lançar a sua imagem crítica sobre o mundo, sobre a cosmovisão dominante da realidade, e é aí que ela própria se auto-organiza permanentemente para se criticar a si mesma. A instituição educativa promove-se a partir da negação para se afirmar. Utilizando o léxico das neurociências, a vocação que se lhe pede é que funcione de um modo sistémico e integrado, ao suprimir o que se revelou inútil com o objectivo de criar, sem nenhum programa preestabelecido e rígido, outras redes de estimulação de mudanças sociais. A plasticidade e a flexibilidade são características que presidem aos sistemas complexos de processamento de informação, onde se assiste a uma selecção de dados em direcção a novos níveis de maior complexidade. A escola actual adopta uma postura ilusória, confundindo o essencial e o acessório, reproduzindo um modelo esgotado. Se formos benevolentes, reconhecemos algumas medidas positivas, mas os alicerces permanecem, o paradigma é intocável e é este que deve ser atingido na sua essência. Não há nenhuma preocupação dos responsáveis pelas políticas educativas em colocar este problema como tarefa urgente de reflexão. O paradoxo é a escola querer ser “manipulada” pelo exterior e acreditar na ilusão do seu privilégio de orientar esse mesmo exterior.

Qualquer fenómeno social é total, como sabemos. A escola não é, pois, um elemento à margem de uma estrutura global. Todos os factores se conjugam na formação das condições que definem os diferentes ecossistemas. Captar os sinais para intervir, reformular os seus próprios sentidos, promover situações plurais de abertura e inacabamento, é isso, repita-se, que hodiernamente se exige ao horizonte do saber em geral e das práticas pedagógicas em particular.