Viagem às Missões

Visitei as ruínas da civilização jesuítico guarani, havida na Bacia Platina, em terras que hoje do Brasil, da Argentina e do Paraguai. Região que conheceu muitos conflitos nos séculos XV e XVIII, quando Portugal e Espanha buscavam delimitar fronteiras. Após trinta anos da primeira que fiz, verifiquei a evolução do conhecimento – obtido através de escavações - sobre esta experiência, ousada até para os dias atuais. E creio que, analisando como o espaço foi utilizado pelos jesuítas nas reduções - aglomerados que não deveriam ultrapassar cinco mil moradores, pois chegado este limite fundava-se outro -, compreendi melhor o êxito dos jesuítas, no propósito em controlar corações e mentes.

A viagem incluiu três das que se encontram em melhor estado: São Miguel Arcanjo/RS, no Brasil; San Inácio Mini/Missiones, na Argentina e Nossa Senhora da Santíssima Trindade/Itapuã, no Paraguai. Os sítios arqueológicos foram tombados pela UNESCO como Patrimônio Histórico da Humanidade e no Brasil, há, em frente às ruínas de São Miguel o Museu das Missões, que possui o maior acervo de arte sacra missioneira do País.

Conhecida como barroco missioneiro, esta arte mostra a capacidade de aprendizado de uns e o sucesso de outros, na difusão da fé pelos jesuítas. Hoje, um pequeno número de descendentes dos indígenas mantêm o idioma guarani como língua oficial, mas também falam português ou espanhol. Na Argentina, não falaram conosco, fazendo sinais com os dedos do valor, em pesos apenas, que aceitam em troca de seus produtos. Infelizmente para eles, em guarani só se conta até cinco, o que dá idéia do pouco que podem obter... E seu artesanato não mais reproduz a figura de Jesus Cristo, de anjos ou santos, que inspiraram as imagens existentes no museu do lado brasileiro.

As ruínas de São Miguel restringem-se a uma bela catedral e todas as noites, a saga da quase extinção deste povo é encenada, num espetáculo de Som e Luz. Na Argentina e no Paraguai, os guias são descendentes dessa tribo, já integrados a “nossa” cultura. E o que sobrou da redução de Nossa Senhora da Santíssima Trindade (Paraguai), mostra a disposição interna dos prédios, obedecida em todas as reduções, onde nada foi deixado ao acaso ou improviso.

E foi através da organização espacial, do limite de habitantes permitido em cada redução, aliado ao convencimento dos caciques, que pude compreender o porquê da utilização do espaço como aliado no afã “pedagógico” dos jesuítas.. Elas eram constituídas, além da praça central e da catedral; da moradia dos jesuítas; do cabildo (prefeitura), onde caciques e índios discutiam decisões a tomar; das residências e de locais de trabalho; da casa das viúvas; da prisão onde eram castigados os que discordavam das decisões “coletivas”; dos cemitérios, onde até crianças foram separadas dos adultos, e entre elas por sexo; atestando a preocupação em utilizar o espaço a serviço de um propósito...

A experiência chamou a tenção dos poderosos: um índio que não é preguiçoso? Que discute o destino de sua produção? Que fabrica máquinas para imprimir livros? Que lê e toca instrumentos musicais sofisticados? Assustadas, as potências ibéricas determinaram a expulsão dos jesuítas, pois o território dava mostras de poder tornar-se uma nova nação. E ainda mais, as reduções estavam em território que, pelo tratado então vigente entre Portugal e Espanha, (Tordesilhas, 1494), eram terras pertencentes à Espanha.

Mas o espaço que serve à dominação, também trabalha em prol da consciência. Expulsos, por força de uma troca do território onde se assentavam Os Sete Povos das Missões pela Colônia de Sacramento (sul do Uruguai) - os guarani, chefiados pelo mitológico líder Sepé Tiarajú, ousaram despertar a ira de Portugal e Espanha, bradando “Esta terra tem dono”. Abandonados pelos jesuítas, enfrentaram sozinhos, na chamada “Guerra Guaranítica”, os exércitos de seus colonizadores juntos, o que resultou no seu quase extermínio e de suas “cidades”, esculpidas em pedra, que o vento e as intempéries estão por devastar também.

Quem hoje olhar atentamente o traçado “urbano” das reduções, onde os índios passaram a viver e produziram de boa vontade, ouvindo a história de Cristo Redentor, verá que o espaço foi cientificamente utilizado a serviço do triunfo de um Poder que, por fim, os aniquilaria quase por completo.

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(*) Agradeço à profª Nadir Lourdes Damiani, do Centro de Estudos Missioneiros, Universidadedo Alto Uruguai/RS, pela leitura atnta e sugestões sobre aspectos deste texto.

Marluiza
Enviado por Marluiza em 10/07/2006
Código do texto: T191126