CLARINETA

Tarde muito quente naquela cidadezinha mineira. Saímos, eu e o Dr. Zé para tomar um sorvete. O ideal seria um chopinho gelado, mas naquela época, imagino, isto ainda não era possível.

Sentamos às cadeiras de uma mesa do modesto bar. O sorvete dali era de frutas e muito gostoso. Neste mesmo tempo apareceu um outro Zé, amigo de infância do Zé, o doutor. Logo pediu um tempo, atravessou a rua e foi à sua casa buscar uma coisa, segundo ele, um troféu, um tesouro jamais pensado ser o possuidor.

E lá veio trazendo uma clarineta. Sentou-se e começou falar sobre o instrumento. Falava, alisava, esfregava a flanelinha, cabeça quase sempre baixa olhando e acariciando a mais bela clarineta nunca vista. Acalentava-a como a filha querida e sempre desejada. Olhei de soslaio para o Zé à minha direita. Ele estava sentado um pouco afastado do bordo da mesa; mãos apoiadas sobre as coxas e o tronco dobrado ligeiramente para frente e estático. Não falava, não se mexia, literalmente de boca semiaberta e olhar fixo no amigo Zé. Quase nem piscava. Absorto.

O que estaria o Zé – o doutor – pensando? O que eu também podia estar imaginando? E ele, o Zé sem o doutor, falava, falava, desmanchou o instrumento nas suas partes e remontou. Até as imperfeições deixadas pelo tempo na carcaça daquela clarineta de um negro luzente era motivo de eloquentes elogios feitos à bela. Ele nunca tocaria aquele raro instrumento, imaginei. Ele seria colocado sobre um pedestal qualquer e ficaria ali para ser adorado. Levantou ligeiramente a cabeça sempre voltada para a clarineta e fitou-nos com os olhos até brilhantes demais e um sorriso tímido.

Saímos tempo depois. Nem eu nem o Zé doutor tocamos no assunto. Falar o quê? Como um espírito alheio àquilo poderia se exprimir a respeito da emoção a um simples instrumento musical, na nossa visão, poderia encantar, enfeitiçar um ser pensante? Me pareceu ter ele encontrado o impossível. Como a gente outra pode exprimir ou sentir o impossível? O que é o impossível?

Depois de mais de cinquenta anos estou matando o tempo e ouvindo a música saída do micro. Mania minha. Um solo de clarineta se inicia. O artista extraindo do seu instrumento sonoridade lá em baixo, no mais grave que a sua máquina de fazer sonhar poderia trabalhar ou na mínima frequência que meus ouvidos de agora já desgastados pelo tempo podem discernir.

Os sons mais pareciam sussurros, suaves suspiros, sopros lisos, sem arestas e em sequência ondulosas enchiam o ambiente de rara beleza, deixando a cabeça livre e o corpo flutuando. Exprimir mais o que se passava então eu não saberia somente bulindo com as letras.

Estava lindo demais. Aqueles sons graves emitidos quase um gemido abafado, brisas suaves assobiantes saindo das pequenas caixinhas do micro e impróprias para o evento. Uma onda estranha, misto de calor, frio, tênues tremores, seguiu meu corpo dos pés em direção à cabeça arrepiando várias e várias vezes os pelos escassos. Fugi do momento. Entrei num transe e tudo em mim agia descomprometido com a realidade.

Então meu cérebro remexeu, rebuscou nas entranhas do não sei onde uma imagem projetada lá de dentro numa enorme tela fictícia. Ali estava estampada em branco e preto a enorme fotografia de uma orquestra organizada e disposta em semicírculo. Todos imóveis. Esfumaçados. À frente, em posição de destaque, um solista de pé com a sua clarineta. O som cada vez mais envolvente e contagiante. Ondas e mais ondas de arrepios. Nada ao meu redor. Somente eu e a música vinda da orquestra fantasma.

Olhei-a bem, talvez por alguns poucos segundos. Não era o Zé, o da clarineta, quem estava lá. Vi claramente ser aquela figura mais parecida comigo. Meu cérebro foi buscá-la lá dentro, armazenada desde menino e a trouxe para meu enlevo ou para minimizar a grande decepção ainda restante por não saber tocar um instrumento sequer. Ele reconhece ter sido um dos meus sonhos de garoto. Não deixaram. Frustração. Era muito magro e o esforço com os pulmões para tocar poderia deixar-me tuberculoso, diziam. Ninguém me consultou. Talvez, na minha cabeça de adolescente quase sempre controversa, eu teria topado e não teria tuberculose e... Ah! Pra quê lembrar e lamentar isso agora? Mágoas, mágoas! Já passaram, mesmo se ainda não de tudo.

Pois é! Por alguns segundos fui rei. Aquele instrumento mágico do Zé produzia sons inebriantes manipulados por mim e para meu deleite. O poder do encantamento possuído transformou-me. O êxtase sentido me colocou muito próximo ao limiar da realidade e da loucura. A loucura não é assim tão danosa como nós ditos normais a consideramos. Vagabundear por lá de vez em quando é salutar. Assim penso: o cérebro pode, sim! Ele também sabe e muito bem fazer milagres.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Dbadini
Enviado por Dbadini em 13/11/2009
Código do texto: T1922020