MOMENTOS CRUCIAIS (As esquinas da História*)

Quem nunca chegou em determinado momento da vida e se perguntou: E agora? Pra lá ou pra cá? Vou ou não vou? Faço ou não faço? Questionamentos decorrentes de uma decisão que temos que tomar, e que muitas vezes determinam invariavelmente nosso futuro. Na trajetória uma bifurcação, dois caminhos e uma opção. Opções que fazemos, e que são fundamentais em nossas vidas. No livre – arbítrio das escolhas, na dialética dos opostos é que emerge a mudança, o devir incessante do processo histórico. Partindo do pressuposto, que as decisões tomadas pelos indivíduos que se relacionam em determinado ambiente interferem diretamente no período histórico em que estão inseridos e resultam nas circunstâncias que promovem o futuro, é que faço algumas reflexões a respeito da realidade econômica e social do município de Torres e também, de toda a região da AMLINORTE (municípios da região do litoral norte gaúcho). Parece que estamos num território esquecido, lembrado nos meses de verão ou quando as pessoas cansadas das intempéries urbanas resolvem migrar ao encontro do refrigério marinho, longe do caos dos grandes centros urbanos. Recantos aconchegantes não faltam em nosso imenso e uniforme litoral. Sem contar na receptividade dos moradores locais que servem de mão-de-obra barata, seja nos diversos setores de prestação de serviços aos visitantes (hotéis, restaurantes) ou na desocupação do próprio lar em benefício de algumas diárias de aluguel. Enfim, a população nativa (incluindo a pequena burguesia, operários, pescadores, agricultores, etc) vêem nos visitantes da nossa região, cédulas de papel moeda que estão dispostos a pagar preços exorbitantes por sua estadia em meio as nossas riquezas naturais, em contrapartida a nossa negligente preocupação ambiental e cultural. A luta de classes é evidente entre os municípios do litoral norte, que são explorados pelo turismo de veraneio. Quem chega em Torres observa um palpável abismo social. À esquerda de quem chega na cidade, em sua porção norte, confunde-se facilmente com balneários verticais a exemplo de Camboriú/SC. Dirigindo-se ao sul, ou fazendo uma minuciosa observação de cima do Morro do Farol, percebem-se facilmente as zonas periféricas em extrema miséria. O melhor exemplo deste contraste é o nosso cartão postal a praia da Guarita e logo atrás, a oeste, o bairro Riacho Doce ou Arroio como é conhecido, sendo um dos núcleos de exclusão da mais bela praia gaúcha. De um lado o produto turístico e do outro, o resultado desta exploração. Percorrendo a Estrada do Mar, próximo ao acesso de Capão da Canoa, outra cidade do litoral norte, aproximadamente 65 km ao sul de Torres, encontramos outra prova material de nossa análise. É impossível alguém não se sensibilizar com tamanha desigualdade entre um luxuoso condomínio privado (que lembra mais as cenas de Barrados no Baile em Beverly Hills) e os desprovidos da nação,o retrato fiel da maioria dos brasileiros que se amontoam em sobrados, em sua grande maioria de madeira, suplicando por um projeto de vida que lhes ofereçam um pouco, somente um pouco de dignidade. Exemplos mínimos que não chegam a abarcar todas as problemáticas que sofre a faixa litorânea do nosso Estado.

Como há um fluxo populacional que vêm desfrutar do ambiente litorâneo, existe a vazão de uma parcela da população local que para não se subjugar aos interesses alheios**, procura a especialização profissional fora dos limites da cidade, muitas vezes, percorrendo os caminhos opostos dos veranistas, deslocando-se para as grandes cidades. É um fenômeno que ocorre com famílias locais que possuem condições financeiras de enviar sua prole para estudar e trabalhar em outras cidades. Em suma, a mão-de-obra especializada não exerce sua influência no desenvolvimento econômico da região. Faça um teste, pergunte para um jovem em idade ativa qual seu projeto de vida morando em Torres? As novas gerações que deveriam fazer a diferença, cooptadas pela mentalidade provinciana do litoral, alimentam a possibilidade de melhores dias em outro lugar, legitimando a inércia caquética dos enferrujados pilares administrativos que agravam ainda mais nossa situação. Os jovens vislumbram um futuro melhor, bem longe daqui. Essa manifestação da juventude não é de hoje, é historicamente comprovado, através da formação acadêmica e profissional das famílias tradicionais de Torres.

Será que sempre foi assim? Existem, pelo menos, dois momentos cruciais para a economia regional e que influenciaram definitivamente a história de Torres e do litoral norte. Tudo como conhecemos hoje poderia ser diferente.

Para melhor compreensão, farei pontuações sucintas sobre estes momentos cruciais que comprometeram o futuro da região das Torres, trazendo mudanças profundas na formação do nosso núcleo urbano e nos projetos de desenvolvimento econômico. Evitarei desgastar detalhadamente os acontecimentos, pois pretendo trazer à luz detalhes preciosos de nossa História no decorrer das publicações.

Momento crucial I : A gênese do núcleo urbano e a influência militar nas Torres

Quando D. José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro, que exercia jurisdição pastoral em todo o sul do país, esteve visitando Torres por volta de 1815 e 1816, foram tomadas decisões que influenciaram na consolidação da comunidade, tal qual conhecemos hoje. Nesta época a região entre Conceição do Arroio (Osório) e Laguna era de baixa densidade demográfica, apresentando alguns moradores, em sua maioria descendentes de famílias açorianas, que se fixaram nos campos do sul (Itapeva), com a distribuição das sesmarias (fins do século XVIII). Ainda não existia nenhuma freguesia ou capela nesta região, o que deixava a população que aqui vivia muito desamparada espiritualmente, tendo a noção que uma instituição religiosa e administrativa em pleno século XIX, era um catalisador populacional. Em Torres, por sua condição geográfica privilegiada, era alvo constante da presença militar e da fiscalização das autoridades administrativas da província, que instalaram uma guarda e registro (e até uma guarnição com dois canhões, Forte de São Diogo das Torres, assunto para um próximo encontro) desde as últimas décadas do século XVIII. No início do século XIX, instala-se em Torres, o Alferes Manoel Ferreira Porto, militar responsável pela guarda e registro das Torres. Neste período o eixo populacional estava voltado para a área territorial, onde hoje se encontra a Itapeva, Estância do Meio (Arroio do Sal) e nas grandes propriedades de terras ao interior. A possibilidade da construção de uma capela foi reivindicada onde houvesse maior número de pessoas, ou seja, na Itapeva, mas Ferreira Porto contestou e influenciou para que a construção da freguesia fosse ao lado de sua residência (considerada a primeira casa do núcleo urbano e que ainda resiste ao tempo sendo a casa n° 1). Em sua visita pastoral, D. Caetano Coutinho, sofria enorme pressão dos moradores que viviam na Itapeva e que queriam que a instituição religiosa fosse erguida nas proximidades de suas terras. Porém, a influência de um único homem foi maior que à vontade da maioria dos moradores. Ferreira Porto definiu que a localização da freguesia seria ao lado de sua casa, como podemos observar até hoje. Local estratégico, na encosta ocidental da Torre Norte, onde quem passava pelo trecho da rua de Baixo (rua Júlio de Castilhos) caminho obrigatório geograficamente, poderia avistar a freguesia de longe. A Freguesia de São Domingos das Torres é representada em uma aquarela atribuída a Debret que mostra a capela pelos fundos sem a torre do sino que foi construída posteriormente,em 1898. A influência de Ferreira Porto é evidente, pois ele era a autoridade administrativa e responsável por receber os visitantes ilustres que aqui passavam, a exemplo do naturalista Saint-Hilaire*** em 1820, que descreve o processo de construção da capela que seria concluída em 1824. Em muitas comunidades, a construção de uma capela implica diretamente na demanda populacional, que vai surgindo aos arredores da mesma. Em Torres não foi diferente, só que ao invés da capela ter surgido no meio da comunidade, foi à capela que originou a comunidade e a catalisou para seus arredores.

Como seria se a Freguesia de São Domingos das Torres fosse construída na Itapeva? No mínimo o eixo populacional continuaria sendo à parte sul, muito provável que a região onde está cidade de Torres preservaria seus aspectos originais. Os sítios arqueológicos que foram sendo destruídos paulatinamente pela desordenada expansão urbana seriam preservados, transformando Torres em um museu ao céu aberto. Sem contar na preservação ambiental, da lagoa do violão, das praias e de nossos maravilhosos monumentos rochosos à beira-mar.

Momento Crucial II: O Projeto Deodorópolis

Durante todo o turbulento século XIX, existiram muitos projetos visando o desenvolvimento econômico da região litorânea. Um destes projetos consistia na canalização das lagoas do litoral, que ligasse POA à Laguna, proporcionando o escoamento da produção econômica da província por uma via hídrica segura. Segundo o engenheiro francês Charles Démoly em suas observações entre 1856 e 1861, colocava que era de fácil execução o projeto de navegação lacustre, sendo favorável à viabilização dos canais de ligação entre uma lagoa e outra. Mas parece que a realização do projeto não foi tão simples, pois já haviam moradores isolados assentados nas margens por onde passaria o canal. Devido às condições geográficas da costa litorânea do Rio Grande do sul e sua vasta extensão de praias retilíneas, fazia-se necessário à construção e um porto marítimo de grandes proporções. No governo provisório do Mal. Deodoro da Fonseca, os projetos portuários herdados da monarquia, era quase unanimidade entre engenheiros responsáveis pelo levantamento de um local adequado, políticos ligados ao governo de Deodoro, como o ministro da Fazenda Rui Barbosa, que Torres era o lugar ideal para tal investimento e a Praia da Guarita o ponto estratégico. A abundância das rochas, a matéria-prima para a construção de um longo braço rochoso estendendo-se para o fundo do mar, apresentava as condições ideais para a conclusão da obra. A construção do porto teve seu início, estendendo trilhos e colocando vagonetas do morro das Furnas até a Torre Sul, onde faziam o transporte das pedras. A remoção das pedras era feita com implosões à dinamite e ainda hoje são visíveis às marcas nas rochas, no local conhecido como Ponte,(é engraçado que hoje não se vê nenhuma ponte lá, mas o nome seria a herança de uma possível ponte que ali existiu no período da construção) na extremidade oriental no morro das Furnas, na praia da Guarita. Com o andamento das obras, a praia da Guarita ficou conhecida como praia do Trilho. Imaginem como estava o cotidiano e o imaginário da população local. As promessas de desenvolvimento econômico eram evidentes, tanto que descendentes de italianos vieram e instalaram-se na Colônia Júlio de Castilhos, fundando a localidade de Morro Azul, aproximadamente em 1890****. Enfim, a produção agrícola teria uma vazão para outros mercadores consumidores, a vila de São Domingos das Torres estaria em ascensão econômica e um futuro promissor estava por vir.

No breve governo de Deodoro, a discussão sobre a concessão do porto de Torres ficou cada vez mais acirrada, principalmente com Rui Barbosa que não admitia benefícios ao concessionário Dr. Trajano Medeiros, que mantinha laços estreitos de amizade com o presidente, culminando na dissolução do Congresso Nacional e a queda do poder do Mal. Deodoro da Fonseca. Assim as obras portuárias em Torres estagnaram e não foram concluídas. Com um olhar minucioso, em frente à Torre Sul podemos ver os vestígios do porto torrense, cuja maior contribuição são os mariscos que crescem em meio às pedras submersas. Com a continuação das implosões dos morros, o alargamento e aprofundamento da praia, Torres não precisaria mais ostentar esse nome, passando a homenagear o ego do ditador e suas idéias mirabolantes. Hoje estaríamos vivendo em Deodorópolis. Não é a toa que a ilha de Desterro, posteriormente foi batizada de Florianópolis, em respeito ao Mal. Mão de ferro Floriano Peixoto. Ainda bem que o porto de Torres, apesar de uma obra incipiente, alimentou os sonhos da comunidade local, não aconteceu. Tudo seria diferente, começando pelos cidadãos Deodoropolenses ou Deodoropolitanos, tendo que conviver com uma obra faraônica e a culpa de ter destruído um patrimônio geológico inestimável para a humanidade, que remonta a cisão continental (procure entender a relação de Torres com a Namíbia, na África), fenômeno que nos legou uma herança material perceptível aos olhos de que tem oportunidade de conhecer nossa valiosa praia da Guarita.

E se o porto de Torres tivesse sido concluído? Certamente teríamos a expansão demográfica deslocada para oeste e um futuro econômico parecido com a cidade portuária de Rio Grande, onde foi concluída a construção de um porto marítimo de grandes proporções, mas estaríamos certos que existem coisas que o dinheiro não pode comprar. O Meio Ambiente e a qualidade de vida são alguns exemplos.

SE... é algo que não existe na História. E a nossa trajetória está por ser escrita, na dialética do presente, no suor, na dor e na alegria dos atores sociais: que somos todos nós.

Lembre-se que para ascender o senso-comum é preciso ler. Leitura é conhecimento e conhecimento é Vida. E o melhor de tudo, “quem lê viaja!!”

* As esquinas da história é uma expressão cunhada pelo historiador Valério Arcary em seu livro “As esquinas perigosas da História”, que caracteriza, ao meu ver, as rupturas, as transformações e os desdobramentos que passa a história de um indivíduo ou de toda uma sociedade.

** Interesses alheios entendam por empregos temporários oferecidos pela demanda turística, que não atendem aos anseios profissionais da comunidade local.

*** Omitirei a detalhada citação de Saint – Hilaire, pois acredito que o fato implicaria em especular outros fatores, como a mão-de-obra utilizada nesta construção e que é descrito pelo mesmo autor. Tema que será abordado em breve nas próximas publicações.

**** existe uma incongruência histórica, quando se consulta a história da vinda dos italianos para o interior da porção nordeste do Estado. Em contato com a história formal reproduzida, principalmente pelo poder público municipal aparece à chegada dos italianos em 1830. Algo incoerente, pois estes imigrantes chegaram à província de São Pedro em 1875. Em 1890 chegaram em nossa região, e a história mal veiculada passa muitas vezes, despercebidas ou ignoradas por aqueles que deveriam ter uma acuidade maior. Essa informação ainda prevalece em diversos sites, (e no site da prefeitura municipal de Torres www.torres.rs.gov.br , que acaba influenciando as informações difundidas) e no livro “A Saga das Praias Gaúchas” de Leda Saraiva.

Publicado no www.rslitoral.com.br

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 13/07/2006
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