Há quanto tempo

Acordo e me dou conta: há quanto tempo não faço tanto do que me faz bem, absorvido pelo ralo da mediocridade ou da pressa ou de sei lá o quê.

Culto, quanto tempo faz que não vou a um culto de verdade, numa igreja aconchegante, com um órgão de tubos tocando as músicas tradicionais e um pastor preocupado em transmitir felicidade e realização no lugar de pecados reais e imaginários e castigos mais imaginários do que reais.

Esqueci da última vez que li um livro num final de semana, sem hora para parar e, mesmo assim, parando e relendo trechos em que a emoção supera a palavra e vice-versa. Na companhia de um bom charuto, ao ar livre, sem a preocupação de direcionar a fumaça para não importunar alguém, bem isso já faz séculos. Há quanto tempo não leio Thiago de Mello?

Andar na chuva, sem eira nem beira, pelo prazer de andar, desviar algumas poças e pisar em outras com força, com liberdade para assobiar “Singing in the rain”, desafinado de uma vez, é, apenas, tardia lembrança dissolvida com as pitangas colhidas após a chuva.

Há quanto tempo não pesco lá longe, no mar, extasiado com as ondas arredondadas e com o sol a desenhar mosaicos de espelhos e estrelas na água e se vier um peixe, tudo bem. Sentar sozinho na praia, ao amanhecer, e deixar o pensamento ser o único dono de meu pensamento, por que nunca mais?

Quando foi a última vez que ouvi música sem me preocupar em entender, apenas deixando que o corpo e a alma absorvessem a beleza e a harmonia?

Qual o dia em que li o último poema definitivo? Em que pretérito escrevi o último que me fez doer a garganta enquanto escrevia?

Quando foi que parei tudo para falar de igual para igual com Deus e tive a impressão que ele tinha tempo pra mim?

Em que prateleira do passado estão as antigas trilhas que abri em passeios de bicicleta, com medo dos cachorros que nunca se sabe o que farão?

Há quanto tempo não sento em aeroporto para observar as pessoas e tentar adivinhar quem são, de onde vêm, o que fazem, o que pensam e crio uma história para cada um?

Tudo faz tanto tempo que tenho medo de que nunca tenha acontecido.