Lembranças

"Tem dias que a gente se sente/ Como quem partiu ou morreu/A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu"...sempre adorei uma música, principalmente, se boa, agradável, sensível, harmoniosa, melódica! Fui criada em ambiente musical. Minha mãe era contralto, sou mezzo soprano e em casa todos somos afinados e gostamos de música. Lembro-me de que ao ouvir uma clássica, ela identificava o compositor. Era uma mulher brilhante! Baixa, olhos expressivos, quando moça foi bastante bonita! Inteligente, sem estudo, ledora e cinéfila. Tenho a quem puxar! Não concluiu seus estudos, porque alguns anos antes de ir para o internato, perdeu uma irmã durante a famosa crise espanhola! Meu avô, receoso de perder a segunda filha, deu-lhe um outro tipo de educação: tocava bandolim, costurava admiravelmente bem, cozinhava os mais deliciosos pratos, bordava, criou junto a meu pai seus sete filhos e todos se formaram e bem! Nós três últimos, fomos considerados gravidez de risco. Era muito devota e afirmava que se Deus lhe enviou os filhos, um jeito Ele daria para que sobrevivessem. Sou a sexta! Imaginem, após cinco numa família pobre! Mamãe não era dessas mulheres beijoquieras, de muito chamego, mas conquistava a todos com seu alto grau de espiritualidade. Proseava com facilidade e transitava em todos os assuntos com firmeza e segurança. Era de trabalhar demais, fazia tachos de goiabada, doces de abóbora cristalizados, pães recheados, broas maravilhosas e um tutu de dar água na boca! Infelizmente não nos ensinou nada ou nós não sentimos o prazer de aprender. Agradava oferecendo-nos pratos deliciosos. Aos 89 anos ficou cega e viveu até os 93 na escuridão e de nada reclamava. A princípio sentiu muito, depois penso que se habituou, como somente os idosos com sua sabedoria sabem fazer. Recordo-me dela com clareza e muita saudade. Tínhamos nossas desavenças, porém ela não deixava que ninguém fosse dormir com raiva um do outro, tanto que até hoje seguimos essa lição. Adorava fruta-de-conde, manga, água (nunca bebeu um refri na vida, dizia que não gostava), macarronada e de uma boa feijoada. No último dia de sua vida, ainda lúcida, queria 'degustar' frango. À noite, antes de passar mal, provou o frango! Não queria ir para a UTI, mas nessa hora sua vontade não foi feita, apesar de muito paparicada por toda família. Era a matriarca. Internou-se às 19h e, no dia seguinte, após eu entregá-la, partiu serenamente. É triste se saber órfã! É triste não ter a quem chamar de papai ou mamãe, quando se chega de uma viagem, da rua, ou mesmo pedir sua opinião numa decisão importante. E quando se tem algo, uma palavra do fundo do coração nos encoraja! Lidar com as perdas não é fácil, temos que enfrentá-las. Hoje a melancolia está impregnada em mim. Talvez seja o tempo, abafado, talvez seja o cansaço da físio, talvez o encontro com o médico, meio preocupado. Não sei, só sei que Chico retratou, mesmo em tempos diferentes, o jeito que me sinto agora! E lembrei-me de mamãe e do que escreveu Drummond..Por que Deus permite/ que as mães vão-se embora?/ Mãe não tem limite,/ étempo sem hora/ luz que não apaga/ quando sopra o vento/ e chuva desaba,/ veludo escondido/ na pele enrugada,/ água pura, ar puro,/ puro pensamento./ Morrer acontece/ com o que é breve e/ passa/ sem deixar vestígio./ Mãe na sua graça,/ é eternidade./ Por que Deus se lembra-mistério profundo-/ de tirá-la um dia?/ Fosse eu Rei do Mundo,/ baixava uma lei:/ Mãe não morre nunca,/ mãe ficará sempre/ junto de seu filho/ e ele, velho embora,/ será pequenino/ feito grão de milho.

Tida Pozzato
Enviado por Tida Pozzato em 27/11/2009
Código do texto: T1947918
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