A ESMOLA IMPOSTA

Muitos cidadãos brasileiros além de já pagarem altos impostos, pagam também um imposto extra, conhecido como esmola. Acredita-se que único propósito de tal imposto seja o de saciar momentaneamente a fome ou o vício do beneficiado.

O argumento daqueles que cobram este imposto é o mesmo por toda a parte:

- Eu poderia estar matando, roubando, mas estou aqui pedindo o seu dinheiro.

Hoje em dia, o sujeito que pede esmola se sente totalmente à vontade para dizer:

- Mas você me deu só um real! O cachorro-quente custa um e cinquenta!

Não sei como esse pessoal deduz que todo cidadão tenha dinheiro no bolso sobrando para dar a eles no momento em que pedem. Muitas pessoas, por exemplo, não gostam de sair de casa portando dinheiro vivo; algumas preferem só carregar o cartão de débito ou de crédito. Será que os pedintes acreditam que as pessoas devem se dirigir a algum banco sacar dinheiro para lhes entregar em mãos?

A prática de pedir esmolas é antiga, tão antiga quanto o próprio dinheiro. E é possível observar como ela está se difundindo.

Num primeiro momento o indivíduo que pede esmolas tenta comover aquele a quem pede, conta uma história triste qualquer; alega que não comeu nada o dia inteiro ou que tem filhos a alimentar. Tenta impor ao outro um sentimento de culpa perante a sua condição, como se estivesse a dizer: “Olhe só para você, você está bem vestido, com certeza se alimentou bem o dia todo e eu não tenho nada!” Neste instante você passa a ser culpado pelo fato de o sujeito ser um miserável e você não. Se a tentativa de comover não adiantar, ele tenta a intimidação; e é aí que o ato de pedir esmolas se torna algo muito próximo do roubo. O pedinte insiste até conseguir alguma coisa, se for preciso entra em uma discussão, assume uma postura de marginal, intimida, tenta causar medo, e assim, muitas pessoas para evitarem transtornos acabam lhes dando algum dinheiro. Essa prática é comum e tolerada em todas as cidades brasileiras e não constitui mais crime algum.

Já não basta ao cidadão ter contas a pagar, ter de sustentar uma casa, uma família, pagar impostos e enfim, toda a vez que sair na rua terá de se deparar com pessoas que esperam que ele tenha algum dinheiro no bolso sobrando para lhes dar. O detalhe é que se acredita que o cidadão deve ter a consciência de sua culpa perante a desgraça alheia. Essa é a obrigação que os pedintes acreditam que as demais pessoas possuem para com eles: a obrigação de lhes dar algo no momento em que eles precisarem. Como eles julgam que você está em condições de ajudá-los? Simplesmente pela sua aparência, por não ser mais um maltrapilho.

É comprovado por meio de pesquisas que muita gente no Brasil vive de esmolas, chegando a adquirir após um mês, valores que podem variar de R$ 400,00 a R$1.200,00. Não quero de forma alguma dizer que são pessoas que se acomodaram em uma vida fácil, até mesmo porque não creio que seja fácil, ou que estejam nesta situação por opção. Mas uma renda de mais de mil reais é superior à renda de uma parcela enorme de brasileiros que possui emprego formal. Ou seja, por mais absurdo que pareça, muitas vezes, ao final de um mês, os pedintes ganham mais dinheiro do que aqueles que lhes deram as esmolas. Se o leitor duvidar deste fato, que investigue o assunto por si mesmo, ou então questione o primeiro que lhe pedir esmolas nas ruas. Pergunte: “Quanto você recebe em esmolas ao final de um dia?”

Ao indivíduo que pede esmolas, não importa se você é desempregado, se não tem onde cair morto, ou se possui uma família enorme para sustentar. Importa a ele, o fato de você estar mais bem apresentável do que ele, e sendo assim, possuir o dever de ajudá-lo com dinheiro.

Há alguns anos, eu morei em uma casa onde todos os dias pessoas tocavam a campainha para pedir alguma coisa. Alguns pediam algo para comer, mas muitas vezes quando alguém me pedia dinheiro, eu oferecia alimento, e a pessoa recusava, alegando já ter feito uma refeição. O pedinte, em geral, prefere receber dinheiro; e hoje é possível não andar nem uma quadra e se deparar com mais de um pedinte.

Quando eu era criança, era comum as pessoas baterem na casa de alguém e se oferecerem para prestar algum serviço, como: limpar o pátio, capinar, cortar a grama, juntar o lixo e etc. Hoje, quando eles batem na porta, é só para pedir; ninguém mais se oferece para prestar serviço algum.

Aqui no meu bairro havia um garotinho que pedia esmolas em frente ao supermercado; ele ficava ali a tarde toda pedindo dinheiro com um olhar triste de dar pena. Certa vez entrei em uma lan house que fica a mais de três quadras do supermercado; e adivinhem quem estava lá? O garotinho. Ele entrou todo feliz, dizendo que estava fazendo dez anos naquele dia. Já era amigo da atendente de tanto que frequentava a lan house aonde ia se divertir com jogos graças ao dinheiro das esmolas. Inclusive ensinou os “truques” de um dos jogos a outro menino que até então ele nem conhecia. Vi ele na lan house mais de uma vez.

Ainda aqui no bairro onde moro, há uma rua tomada por flanelinhas. Estes indivíduos ficam o dia todo pedindo dinheiro a pessoas que ali estacionam seus carros, a pretexto de cuidar dos veículos, mesmo não cuidando de veículo algum. Durante a tarde é possível vê-los em um divertido jogo de cartas realizado sobre o cordão da calçada, onde apostam o dinheiro recebido. Esta é a atividade profissional deles, e já fazem isso naquela rua há anos. São os donos da rua. Alguns moradores, inclusive, não possuem dúvidas de que eles sejam os responsáveis por roubos a pedestres ocorridos nas redondezas. Porto Alegre tolera este tipo de extorsão. Em algumas cidades aqui no Rio Grande do Sul esta atividade é proibida.

No metrô (trensurb), que vai de Porto Alegre a cidades próximas, é comum pedirem esmolas, e muitos destes pedintes entregam pedaços de papel aos passageiros onde está escrito: “É melhor pedir do que roubar.” Frase que acho terrível, pois não acho diferente de dizer: “Conto com o seu bom senso para não lhe roubar.” No trem, vi mais de uma vez um homem que vende balas de goma; ele sempre se apresenta aos passageiros e conta uma longa história alegando que não gostaria de estar naquela situação, mas que vende balas por necessidade, e sempre pede desculpas por qualquer transtorno causado. Muitas pessoas, mesmo não querendo as balas, dão dinheiro a ele. Nos ônibus também é possível ver gente pedindo dinheiro. Não importa o lugar ou a hora, eles sempre estão por aí pedindo um trocado; e vão se propagar ainda mais. Eles são a consequência natural do modelo de nossa sociedade.

Mesmo que levemos em consideração todas as questões sociais que colocam as pessoas em uma condição de vida miserável, será que isto justifica o fato de alguns indivíduos tornarem-se profissionais em pedir esmolas? Já tive a oportunidade, assim como qualquer cidadão brasileiro, de conviver com pessoas absolutamente pobres e que jamais pediram esmolas por considerarem algo muito vergonhoso.

Agora pergunto ao leitor: você já percebeu que a maioria das pessoas que pedem esmolas não são propriamente mendigos? Já percebeu que a maioria deles são homens jovens e aparentemente saudáveis?

Quando eu ainda era estudante no segundo grau, eu passava diante da Catedral Metropolitana de Porto Alegre ao ir e voltar da escola. Diante das portas da Catedral, em seus degraus, dormiam e ainda dormem vários mendigos. Durante um ano inteiro em que eu passei pelo local, à noite, e muito próximo daqueles mendigos, apenas uma única vez um deles me pediu uma moeda, que eu inclusive não dei. Talvez aqueles mendigos não pedissem dinheiro porque ali eram assistidos por alguns grupos que lhes forneciam alimento durante a noite, em geral sopa. Mas ao analisar o comportamento dos moradores de rua em outras regiões, pude concluir que este comportamento não muda. O mendigo que dorme atirado no chão é um sujeito sem esperanças, que não almeja muito mais do que o pão de cada dia. Ao contrário do sujeito que não aceita a sua situação, que ainda tem meios de conseguir roupas novas para vestir, que pretende comprar um tênis novo, se divertir com os amigos, impressionar garotas e quem sabe mudar de vida, e que inclusive, não costuma dormir nas ruas. Este é o perfil do homem que se profissionalizou em pedir esmolas. Isto não significa que mendigos também não peçam, mas a abordagem deles é totalmente diferente e o propósito muitas vezes também. E é interessante notar que não é tão comum ver mulheres pedindo dinheiro, geralmente as que fazem isto estão cercadas de crianças e se utilizam delas para sensibilizar aqueles a quem pedem. As crianças também constituem um grupo enorme de pedintes.

Apesar de ser contra, eu já dei muitas esmolas, apenas a pessoas que mencionaram que precisavam comprar algo para comer. Nada impediria qualquer um deles de utilizar o dinheiro para outro fim, como por exemplo, comprar drogas. Todas estas esmolas foram de pequenas quantias, até mesmo porque eu não ganho quarenta reais por dia como estes que se tornaram profissionais em pedir dinheiro.

Atualmente vivemos um momento em que eles se acham no direito de dizer que você deu pouco, que deveria ter dado mais. Amanhã provavelmente vão te pedir o dinheiro do almoço e quem sabe até o do café da tarde. Depois vão te pedir o do almoço, o do café e o da janta. Até que um dia vão estar lhe pedindo para sustentar a família toda, para fornecer suas refeições e quem sabe até pagar suas contas. Ora, a obrigação é sua! Quem mandou não ser um miserável? Se quiser evitar dar esmolas, terá de ser muito radical em sua convicção, ou então, deverá fazer voto de pobreza e não possuir absolutamente nada, pois ninguém lhe pedirá o que não tem.

É devido a estes exageros que apoio atitudes como a do jornalista Reinaldo Azevedo, que como bem disse em entrevista ao programa do Jô Soares, retirou das mãos de um pedinte o dinheiro que havia acabado de lhe dar. Isto ocorreu porque o homem disse:

- Mas só dois reais!

Já vi várias situações no Centro de Porto Alegre, onde supostos pedintes se aproximavam dos pedestres para pedir dinheiro, porém não estavam pedindo, mas exigindo e fazendo ameaças.

Nem todo o pedinte é mal educado ou costuma importunar para receber o valor desejado. Muitos aceitam qualquer contribuição. Nem todo o pedinte possui baixa escolaridade. Muitos surpreendem por serem pessoas inteligentes e comunicativas e que chegaram até mesmo a concluir um curso superior.

Este não é um texto de ataque aos necessitados, mas é um ataque à indiferença com que são tratados; ao conformismo da sociedade que não percebe que isto se voltará contra ela, e principalmente, um ataque a todos os marginais que praticam extorsão quando supostamente estariam pedindo esmolas. Compreendo perfeitamente que nenhum ser humano gostaria de se encontrar em uma situação onde tenha que depender da boa vontade alheia para obter o seu alimento. Como disse o sociólogo Herbert de Souza: “Naquele momento em que recebe uma esmola, a pessoa excluída de um processo social injusto pode comer alguma coisa... Quem pede esmola está ou deve estar com fome.” Mas quem foi que disse que o dinheiro é para o alimento? Aí é que está a questão. É ao fazer esta indagação que muitos hesitam, e passam a julgar se o pedinte é merecedor ou não do dinheiro. E é verdade que a fome não espera; quem tem fome quer acabar com a fome, e para acabar com a fome é preciso comer, e para poder comer é preciso ter algum dinheiro para comprar o alimento. Nós poderíamos fazer de conta que não temos nada a ver com isso, é muito mais fácil e muito mais cômodo não ter responsabilidade alguma pelo próximo. É mais fácil dizer “não” toda a vez que um faminto bater à porta; e é exatamente isto o que faz muita gente que está de barriga cheia. No entanto, saciando momentaneamente a fome de alguém, não vamos tirar tal pessoa da miséria e de forma alguma estaremos conseguindo fazer qualquer coisa além de acabar com a fome da pessoa naquele momento. Como eu já mencionei aqui, há uma grande diferença entre os tipos e os propósitos daqueles que pedem esmolas, e é preciso saber julgar a quem você está dando, ou não, o seu dinheiro. Herbert de Sousa falou sobre aqueles que pedem esmolas devido à fome, mas sabemos que nem todo o pedinte passa fome.

• Surpreende a forma com que este grave assunto é ignorado tanto por governantes, como pela sociedade. Como se o problema simplesmente não existisse.

Entrevista de Herbert de Souza à revista Isto É (19 de julho de 1996):

http://www.terra.com.br/istoe/polemica/139404.htm

Provocador
Enviado por Provocador em 03/12/2009
Reeditado em 08/04/2010
Código do texto: T1958894
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