crônicas do Rio I

ESPECTROS E RUÍNAS

De fato, não era um dia dos mais ensolarados no Rio de Janeiro, o fim de tarde ganhava um tom único com matizes de lilás que lembravam tanto aurora boreal quanto fotografia de Walter Carvalho. É claro que eu sabia que essas lendas que se conta com a pretensão de divertir turista ou assustar criança não eram verdadeiras. Mas, ainda assim, a possibilidade de tomar com os tais espectros me parecia agradável, claro que não pela possibilidade mediúnica e sim pela lítero-musical.

Eu caminhava ali pela Lapa, acompanhando a revoada dos pombos e lutando com o vento frio. Qualquer olhar que viajasse um pouco acima do óbvio, seria capaz de descortinar entre as folhagens as ruínas daquele casarão amarelo que parecia brotar lá do alto de Santa Teresa, que hoje se chama Parque das Ruínas. Local que marcou os áureos tempos do bairro. Ali, nos tempos da República Velha, ecoaram coloridos os acordes do maestro Villa Lobos em muitas noites de saraus onde personagens como Arnaldo Estrela, Guimar Novais, Yara de Moura e Isadora Duncan deram o ar da graça. E claro, onde a audaciosa Laurinda Santos Lobo, fumava suas piteiras e servia mate-laranjeira e champanhe para seus convidados no salão Murtinho.

Laurinda foi a grande responsável pela efervescência cultural do bairro, figura muito cultuada por aqueles ladeiras por apoiar muitas músicos e artistas. Quando a “dama dos mil vestidos” morreu, a casa foi doada ao instituto Hahnemanniano, que nunca quis conservá-la. Com o tempo virou ruínas, servindo à função nem um pouco nobre de abrigar mendigos e traficantes locais.

Chego ao Largo da Carioca e, enquanto espero o bonde, pensamentos revolvem na fumaça dos cigarros, reminiscências de épocas mais românticas que a nossa; o bucolismo, a contra-cultura, a boemia e outras pitorescas fábulas do tal bairro dos artistas. É aí que o Paula Matos chega e interrompo por um instante meus pensamentos para embarcar com o céu ao fundo parecendo ainda mais glacial que antes.

Lembro que numa outra dessas tardes de flâneur profissional, estava lá descansando de nada no charmoso café, instalado no pátio do casarão, de onde – discorde quem puder – tem-se a mais cinematográfica vista da baía de Guanabara. Foi que senti – no meio da minha contemplação – que a balconista me atendia meio irrequieta, como quem quer sair correndo mas não pode. Como meu time fosse outro aquela hora, puxei conversa banal, na tentativa de tornar o clima mais ameno, com aquela sintomática pergunta de falta de assunto:

“Você trabalha aqui há muito tempo?”

“Faz uns dois meses.”

“Ainda bem que você chegou.”, ela disse.

“Por que?”

"Bom, sei que você não vai acreditar, mas não gosto de ficar aqui sozinha, sempre ouço vozes e barulhos estranhos”. E começou a relatar as lendas que os funcionários mais antigos contam. Relatos de instrumentos que tocam sozinhos, vozes fazendo psiu´s sem que haja ninguém por perto, copos que se quebram sozinhos e outros assombramentos mais zombeteiros.

“Mas você já viu alguma coisa?”, perguntei.

“Não, só ouvi.”

“Em se tratando de músicos, faz sentido”, pensei comigo.

“Bem, vou indo. Você vai ficar por aí sozinha?”, ela disse com olhos grandes.

“Mas é claro”, respondi sorrindo.

A moça foi embora, desamarrando o avental, um tanto apressada e aliviada.

Bem, comecei a elocubrar, se há vozes e se fantasmas existem aqui há uma grande possibilidade de eles serem dos antigos freqüentadores da casa em ruínas ou de Castro Maya, o rico industrial que morou no lugar onde hoje funciona o Museu da Chácara do Céu. Era um mecenas, colecionador de arte. Sim, esse tal Raymundo Ottoni dormia na companhia de Portinari, Matisse e Guinard. Não creio que devesse temer tão ilustres espectros. Ao contrário, adoraria topar com ele sentado ali no jardim de Burle Marx conferindo as flores. Segundo consta foi uma residência projetada pelo arquiteto modernista Wladimir Alves de Souza, em 1957. Lembrei deste dado quando estive no museu pela última vez.

Já não havia mais visitantes por ali, saí da Chácara e peguei a ponte de estrutura metálica que corta o interior das ruínas do casarão neo-colonial. Pensei em um pesadelo industrial atropelando sonhos de amor cortês. Coisa de filme. Antigo o moderno num choque dramático e visceral, mas possível. Aqui Joaquim Murtinho, marido de Laurinda passou seus últimos dias, morreu com a visão do mar abraçando a montanha. Caminhei por todo local na esperança de um contato com esses seres boêmios e intelectuais do mundo imaterial, mas nada, o máximo que consegui de ruído foi o eco dos meus próprios passos reverberando nos tijolos das paredes onde hoje brotam plantas e memórias.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 17/07/2006
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