crônicas do Rio IV

Eu e as terríveis dores de Camilo num castelo de lioz

Não há nada pior do que sofrer as dores da ausência num dia de sol. E cá fico eu, tentando caminhar com o peso dessas dores mais terríveis, na esperança de que um dia sejam transmutadas em matéria de poesia. Desculpem se este começo soa ultra-romântico. Mas talvez seja impossível não ser neste momento, me encontrando no lugar onde estou, dentro de uma sala de leitura onde tudo parece remeter ao estado nebuloso, negro e interminável de um amor perdido.

No momento sei que tantos pedestres estão a lutar lá fora por um naco de calçada e, enquanto caminhões chegam, saem, carregam, descarregam, carros ganham o espaço da rua, aqui dentro gozamos desse grande silêncio d’alma. Ali na praça, Luis de Camões assiste a tudo, meio de soslaio, como se soubesse o que se passa aqui comigo.

Este prédio é uma biblioteca pública desde 1900, mas foi há pouco tempo que descobri alguns segredos guardados além dos mais de 350 mil livros que forram as paredes do Gabinete Português de Leitura, que só passou a ser Real em 1906, por obra e graça do Rei Dom Carlos. Boutique à lire do Rio. E sem precisar pagar pelos empréstimos, o que é bem melhor. Estamos dentro de um pequeno castelo feito de pedra lioz – a uns dez passos para trás de seu pórtico parece branco – que foi desenhado por um arquiteto português chamado Rafael Castro e Silva. A obra foi inaugurada em 1887. Idéia de um grupo de emigrantes portugueses muito afeitos às letras, alguns deles perseguidos em Portugal pelo absolutismo e que no Rio de Janeiro se reuniram com a nobre intenção de ampliar seus conhecimentos, criando um Gabinete que chegou a ser palco das primeiras reuniões da Academia Brasileira de Letras, quando esta ainda não tinha sede fixa.

Os turistas entram e saem da sala de leitura, desviando a atenção dos leitores, fotografando o que de mais óbvio uma câmera consegue captar nesses tempos digitais. Capturam a minha atenção por alguns minutos, ainda que no momento ela esteja mais focada em dores de amor. Pensando nelas não consegui estudar e agora já passa das cinco.

“As vidraças reverberam o sol poente”, diria Camilo Castelo Branco. Em delírios vespertinos, penso que talvez pudesse ter sido este um bom lugar para que ele chorasse suas últimas dores de amor, pouco antes do seu suicídio, em 1890. Admirando a imensa clarabóia do teto, agonizando entre vermelhos, azuis e brancos dos desenhos florais, depois de tantas noites de insônias coléricas.

E nesta casa deixou o maior acervo de obras de e sobre ele fora de Portugal. Lá por 1882, o próprio escritor vendeu parte de sua biblioteca para o Real Gabinete. Entre elas, o manuscrito autógrafo de “Amor de Perdição”, de 24 de setembro de 1861, uma espécie de Romeu e Julieta lusitano, que foi recebido com grande entusiasmo pela crítica, um dos grandes clássicos da literatura mundial.

Mas além das terríveis dores de amor, que emprestava a seus personagens, outra dor lancinante assaltou seus nervos durante muito tempo, só que estas não brotavam de seu espírito ultra-romântico. Era um dente, ora pois, que lhe doía febrilmente e que após ser extraído ficou sob a guarda de sua nora, Ana Rosa Corrêa. Depois da morte de Camilo, o incisivo foi dado ao cunhado dela, que pediu a um amigo que o doasse ao Real Gabinete. E aqui ficou guardada uma pequena mostra física de sua mordacidade crítica.

É tarde, o prédio já vai fechar e sol da tarde vai ensaiando seus últimos raios. Eu deixo primeiro Camilo com os outros livros raros, depois deixo Camões vigiando o prédio neomanuelino, que evoca sua epopéia. Ganho a rua. Os artistas ficam para trás com suas dores imortalizadas, eu levo no peito as minhas dores ordinárias, as saudades do medo da morte e das intermináveis esperas pelo amor. Agora, já não espero, corro. E morro no centro da cidade nervosa. É o fim da crônica.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 18/07/2006
Código do texto: T196507