ALUCINAÇÕES FUTURISTAS

ALUCINAÇÕES FUTURISTAS

Já escurece no meu bairro. A luz, cheia de energia e cores, que a seu dia dava vida e alegria, na disfunção dos seus encantos, chamava a noite. E a noite, vestindo seu negro-solene manto, embalou o dia em seus braços até adormecer e pô-lo em seu berço.

Os pardais, único ser vivo da natureza que ainda conduz a inocência pelo bairro afora, recolhem-se às ramagens. Cessam os cantos e as revoadas. A noite selou-lhes o bico, que só se abrirá com os alvores da próxima madrugada. A algazarra, porém, continua. Os pássaros dão lugar às crianças que aproveitam o dia até a última réstia. Nas casas simples do bairro não há espaço para elas. Nem a praçinha oferece-lhes segurança, visto lá acomodarem-se os amigos da fumaça. Usam, então, a calmaria da rua que não oferece grande trânsito de automóveis àquela hora, para queimar calorias em sua expansão.

Logo as luzes artificiais serão acesas. Os globos de mercúrio, como olhos severos a fiscalizar a escuridão, pendem silenciosos dos postes eretos como austeros vigilantes. Mas a luz artificial não tem poderes para sustar os ponteiros da noite. Logo será a hora da calma absoluta.

Recolhe-se a petizada atendendo ao chamado dos pais. Vão ao banho as crianças. Um banho rápido e, com a desculpa de poupar energia, apressam-se porque já é hora da novela. Saem do banho correndo, já com um olho no televisor. Vestem a calça do pijama e, ainda enfiando o casaco, plantam-se no sofá. Lances venenosos, mal escolhidos para o horário, espelham-se no vídeo. A tônica do enredo é de jovens de tenra idade, chamados precocemente de pré-adolescentes, agarrados aos beijos e amassos, num canto escuro qualquer, insinuando muito mais. Termina a novela e é hora das notícias. Noticiário local, do país e do exterior. Um pouco de cultura e conhecimentos gerais para orientar o cidadão do futuro e o adulto atual. Mas isso, se não interessa aos jovens, muito menos há de interessar às crianças. Em certos lares nem aos adultos há de fazer-lhes a cabeça. E vai daí que o televisor descansa e faz-se intervalo para a janta. Nesse ínterim, como assunto cultural, talvez até que se comente a trilha sonora da recém assistida novela.

Já cedo, quando o reboliço sadio e alegre dos pardais começa um novo dia, as crianças mais velhas vão à escola. Os pequenos ligam novamente o televisor, ainda com o leitinho na xícara, ou mesmo, na mamadeira. Nos dias úteis ou não, todos os canais trazem farto material de diversão em forma de desenhos animados. Estes sempre espelham lutas sangrentas entre o bem e o mal. As armas do futuro; os super-homens e super-monstros (mutantes); homens-máquina e mulheres imbatíveis. Isso tudo com uma naturalidade espantosa como se , realmente, estivesse acontecendo alhures.

Existe um provérbio latino que diz: - Quod licet, ingratum este. Quod non licet, acrius urit , trocando-se isso em miúdos significa que “o que é permitido, não nos interessa, mas o proibido – ai, que vontade que dá! Deduz-se pela experiência, que a criança, das imagens vistas, só assimila o exemplo mais sádico e nocivo.

Fala-se muito na precocidade da criança em detrimento dos tempos idos da nossa própria infância. Fala-se tanto na fertilidade mental dos meninos e meninas de hoje, tendo por agentes responsáveis os modernos veículos de comunicação. E fala-se, também, nos benefícios trazidos por esses veículos, em todos os seus campos, a cujo mérito localizado até podemos anuir.

Resta saber se é sadio para a mente humana em formação, essa precoce evolução; se o jovem consegue coordenar sua vida com essa corrida moderna, mais as imagens utópicas do futuro que lhe implantam no cérebro, mesmo enfrentando os mesmos ou piores problemas dos tempos passados, ainda mais com o corre-corre do ciclo que lhes exigirá, quando adultos, o incremento da luta pela sobrevivência; se a facilidade de sobrepujar o inimigo não põe na cabecinha da criança ideias de que deverá proceder de igual maneira em sua vida real e, não o podendo, lança-se aos alucinógenos e ao álcool para suprir essa deficiência; e, finalmente, se essas influentes convicções o não levam a travar violentos conflitos interiores e externos, extravasando-os para o meio em que vive.

Resta inquirirmo-nos, finalmente, se a seleção dos programas livres, sem censura, com suas chacrichiconetes, do passado ou as faustoxuxarradas pornôs do presente, dando seu recado oral e visual, é a mais indicada programação para a formação moral da nossa juventude.

Por mais se avance na tecnologia e no calor modernista envolvente, nossos jovens sentirão hoje em seu íntimo os mesmos sonhos sentidos em nosso tempo; os mesmos desejos românticos de uma vida cor-de-rosa; a mesma ânsia pela real inocência e o espírito de moralidade, que lhes não é dado praticar por convenção do novo ritmo que a era atual implantou em suas vidas, apoiada por pais, educadores e autoridades. É bom pensarmos nisso com força, antes que os desmandos da nossa sociedade não tome rumos ainda piores.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 08/12/2009
Código do texto: T1966405
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