SANGUE NA FESTA DA PADROEIRA

Era 12 de outubro, ano de 1982, um feriado bonito, e fomos ao vilarejo de Pinhões, distrito de Santa Luzia, para assistir às festividades tradicionais do lugar, em homenagem à N.S. do Rosário, a santa padroeira.

Meu sogro, Rodelnegio, pintor primitivista famoso, minha sogra, Dona Geralda, minha mulher Maria Mari e alguns amigos, gente da terra, Seu Roque, Olga e Miguel.

O sogro Rodelnegio, máquina fotográfica a tiracolo, não perdia os lances do pessoal do lugarejo, os cabras à porta do botequim, naquele bate-papo preguiçoso do meio dia, as moças trançando pra lá e pra cá na ruazinha principal e o adro da igrejinha, no morro, com nego de roupa domingueira, foguetes espocando no ar, camelô vendendo santinhos e lembranças, o alto falante soltando nos ares velhos dobrados meus conhecidos, marchas dos meus tempos de estudante.

A igreja, pequenina, pintada de azul celeste, janelas brancas, ia se enchendo de devotos da santa. O pessoal da congada, os “congadeiros”, se concentrava numa rua de baixo e, comandados pelo Mestre, todo paramentado e de viola em punho, um negro dos seus setenta anos, ensaiava os primeiros movimentos da dança folclórica.

O Mestre gritava com um e com outro, orientando, reclamando. Meu sogro, o pintor, atento, feliz e sorridente, retratando as cenas que lhe dariam, mais tarde, farto material e inspiração para muito quadro bonito.

Foi quando um alarido irrompeu entre as pessoas, vindo de gente que saia do interior da igreja! Mulheres e crianças choravam, assustadas, homens praguejando, nervosos, alguns correndo como se estivessem fugindo do próprio diabo ...

Aproximamo-nos de um grupo e, com ar de incredulidade, inteiramo-nos dos motivos da correria:- um moço havia sido esfaqueado dentro da igreja, ajoelhado defronte ao altar da virgem! O assassino estava preso, agarrado pelo padre e alguns fieis. O rapaz ferido fora colocado no interior de um automóvel, que partiu em velocidade, segundos antes, buscando o hospital de Santa Luzia, pois que em Pinhões não havia sequer uma farmácia. Como se apurou, mais tarde, o criminoso era esquizofrênico, desconhecido na localidade, estando lá de passagem. Não houve motivo para o crime.

O padre fechou a igreja e o povo, atônito lá fora, comentava a tragédia. Meia hora depois chegou um carro da polícia, com três soldados armados. Entraram na igreja sob o clamor do povo, que pedia vingança, justiça pelas próprias mãos, eis que a vítima era pessoa benquista no lugar e o assassino um forasteiro!

Daí a pouco circulava a notícia da morte do rapaz em Santa Luzia, o que deixou o pessoal com os ânimos ainda mais acirrados. Gritos de “lincha, lincha!”, “filho da puta”, ressoaram frenéticos, exaltando a turba.

Um milico saiu da capela e puxou seu revolver. O povo, antes de se intimidar, protestou e se adiantou, encurralando o soldado na porta, obrigando-o a guardar sua arma e escapulir pro interior da igreja.

Aí a coisa ficou feia e, ante a ameaça de invasão da capelinha, com a massa pretendendo resgatar o criminoso e justiçá-lo, um outro soldado fugiu com o carro em busca de reforço, o qual não demorou muito.

Chegou uma viatura da ROTAM, polícia de choque, seus ocupantes já desceram empurrando os homens, metendo-lhes as coronhas dos fuzis nos peitos, abriram um claro frente à igreja e o assassino pôde sair algemado, sendo introduzido no “rapa” que saiu desabalado em direção à polícia central.

O povo, em grupos, comentava o ocorrido, moços e parentes do morto choravam em desespero, o padre recomendava calma pelo alto falante, concitando as pessoas a voltarem pras suas casas, pois não haveria mais festa da padroeira.

Os “congadeiros” foram se dispersando, a praça foi ficando vazia, a sombra da tarde chegando, caindo sobre o lugar e tudo ia voltando à normalidade. Apenas a igrejinha, ensangüentada do altar às escadas da porta principal, testemunhava, silenciosa, a cena violenta que se desenrolara momentos antes, e que empanara o brilho das festividades programadas, trazendo em seu lugar o choro, a tragédia e a morte...

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B.Hte., 12/10/82

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 16/12/2009
Reeditado em 17/12/2009
Código do texto: T1980387
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