Itaboraí

Lembro-me da primeira vez que andei de trem. Foi com meu pai, minha irmã e meu irmão. Saímos de casa com papai sem destino certo. Só sabíamos que era para algum lugar divertido. Lá fomos nós rumo ao Centro de São Gonçalo a fim de embarcarmos no trem. Entramos, se não me falha memória, na Estação próxima ao Clube Tamoio. Tudo era novidade. “Pai, não tem cobrador?”. Ele respondia que sim, mas no trem, o funcionário responsável por receber de nós o dinheiro da passagem vinha ao nosso encontro depois que nós já estivéssemos sentados. Tão logo meu pai acabou de falar, um funcionário alto e magro com bigodinho e uniforme azul marinho quase preto recebeu de uma senhora loura gorducha e com as bochechas pintadas de ruge como bolotas rosadas (Isso já foi moda!) o dinheiro da passagem. Ela estendeu a ele o dinheiro dobrado no sentido do comprimento entre os seus dedos roliços. O cobrador (acho que era assim denominado seu cargo) apanhou o dinheiro delicadamente e lhe entregou um pedaço de papel. “Pai, isso é uma ficha?” (Para você mais novinho ou daqueles que insistem em esquecer-se do passado para não denunciar a idade, essa pergunta foi feita por um de nós três ao meu pai porque nos ônibus havia uma ficha entregue pelo trocador, tão logo passávamos pela roleta e finalmente depositada quando desembarcávamos, como forma de controle e estimativa da empresa de ônibus). Ele respondeu que não. Disse ser aquilo o bilhete da passagem. Chegou a hora de papai pagar. O moço aproximou-se de nós e nos cumprimentou simpático. Os seis olhos buliçosos queriam ver o jovem senhor perfurar os bilhetes com uma espécie de alicate. Ele foi tão gentil a ponto de abaixar seus braços longos até uma altura suficiente para nós olharmos. A delicadeza ainda existia.

Passado esse pequeno negociar, começamos a olhar a paisagem, olhar as pessoas, fazer perguntas. Seu Oswaldo Velho, sempre orgulhoso dos filhos, conseguia responder a todas. Ele sabia tudo. Dentro do vagão as pessoas pareciam corteses e simpáticas. A senhora gorducha de roupas coloridas sorria sempre para nós. Ao seu lado havia alguém que não sei quem é. Só sei da sua posição junto à janela. Esse alguém era mais discreto e só sorria fugazmente. As cores da dona das roupas coloridas e com ruge em bolotas ofuscavam a minha memória. Não sei porque estou falando dessa pessoa. Não sei nem mesmo se era homem ou mulher. Mas lembro do seu olhar atrás das lentes dos óculos e do sorriso como feito a lápis de cor magenta. Não tinha barbas. Provavelmente, então, deveria ser uma mulher. Mas as roupas eram tão masculinas. Um casaco preto e um chapéu como o de Santos Dummont (Acreditem se quiserem. Minha obrigação é escrever). Quem sabe seria a memória viajando conosco. Daí talvez tanta discrição. Fugia do seu olhar e olhava para frente. Passamos em frente da casa de Tia Diméia em Santa Luzia. Atravessamos o Jardim Catarina e Guaxindiba com sua antiga fábrica de cimento Portland Mauá. Entramos em Itaboraí. Fomos até Porto das Caixas.

Nosso destino enfim, foi esse bairro chamado Porto das Caixas. Fica no fundo da Baía de Guanabara. Trata-se de um litoral estreitíssimo entre São Gonçalo e a atual Guapimirim. Lá existe uma igreja onde se acredita acontecerem milagres. Papai nos levou até o templo. Atravessamos a nave depois de fazermos reverentemente a genuflexão. Fomos até o altar com uma garrafa de água para ser abençoada aos pés da estátua do Cristo na cruz.

Essa garrafa ficou guardada durante bastante tempo em nossa casa. Eu, beato como só, achava a água gostosa. Papai acreditava piamente no poder daquela água e eu mais velho seguia seus passos. Não sei do fim dessa água com sabor de fé pueril. Só sei da sua conservação sagrada na garrafa nada sacra feita de plástico azul translúcido. Ela não derramou pelo chão e nem lavou minha alma para eu fazer uma introdução mentirosa ao próximo parágrafo. Lembro-me somente do meu pai tirando do guarda-roupa do seu quarto a garrafa (era uma relíquia a água) e bebendo pequenos goles desse licor de hidrogênio e oxigênio. Dessa fé me lembro nitidamente e com a segurança das pedras. Pedras bonitas de onde deveriam ter sido jorradas as águas milagrosas. Pedras bonitas como o nome indígena da cidade. Bonita como o carinho do nosso amado pai com seus filhos numa lanchonete a comerem todos pastéis de carne com azeitonas e caldo de cana. Desse gosto lembro-me até hoje mesmo depois de me tornar vegetariano. Eram crocantes por fora e com bolhas miúdas. A massa esfarelava-se ao contato com nossos dentes. De vez em quando uma mordida numa azeitona e o revezamento de risos entre os irmãos. Naquela época Seu Oswaldo era grande perto de nós. Com sua camisa cinza listrada e sua calça de tergal escura ele estava de pé aparando as costas de Zezinho, o caçula, cujas pernas não conseguiam atingir o chão quando sentado no banco giratório. Osnizinha com suas bochechas gorduchas e seus cabelos cacheados mordia o pastel e eu encarapitado de frente para ela no banco estava bebendo o caldo-de-cana. Bendita memória! Saímos dessa lanchonete alimentados tanto para nunca mais. Mamãe cozinha muito bem, minha irmã aprimorou-se no forno e no fogão depois de casada. Meu irmão tempera bem seus pratos e eu invento na cozinha tanto quanto nas telas. Nenhum de nós foi capaz de recriar o sabor daquele lanche tão substancioso a ponto de, com a boca e os olhos fechados, sentir o gosto dessa história para mim viva mesmo conduzida nos trilhos desgastados duma ferrovia prestes a desaparecer.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 21/12/2009
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