Um homem chamado Ceará

Eu o conheci num dia qualquer,numa tarde quente de verão.

Caminhava com certa dificuldade.

As pernas pareciam duas varas carregando um abdome distendido para a frente,o que

demonstrava que algo não ia bem com relação à sua saúde.

A cabeça era recoberta por uma pelugem crespa e meio loira.

Tinha no rosto um semblante de um ser sofrido,corroido pelas drogas e pelo vício

do álcool.Era mais um dos seres que caminham por esse nosso mundinho,

perdidos no meio de uma multidão.

Fazia uns serviçinhos aqui e acolá para manter os vícios.

Algum bom samaritano,tinha cedido um barraco para que ele morasse.

Costumava vê-lo passar e tinha uma certa curiosidade com relação à sua pessoa,mas

por ser moradora nova no bairro,jamais fiz qualquer questionamento.

Naquela tarde,ele bateu na minha porta para pedir uma cesta básica.

Prontamente o atendi e começei a ceder uma cesta todos os mêses.

Passados alguns dias,quando eu chegava do trabalho,meu filho nem mesmo me deixou entrar

em casa,pois ele,Ceará,estaria morrendo.

Larguei meu carro ali mesmo e corri em direção ao local em que ele morava.

Lá estava ele,largado numa cama fétida,espumando,gritando.

Esqueci os detalhes do local e me aproximei dele.

Chamei pelo nome e ele não atendia,não reagia à nada.

Imediatamente percebi o que se passava.

Ele estava tendo uma crise de HIPOGLICEMIA,mas como eu não dispunha de soro glicosado

e nem sou médica,chamei o SAMU.

Eles chegaram rapidamente ao local e tanto quanto eu,assustaram-se com a imundície existente.

O diagónostico médico,foi aquele que eu já conhecia.

Ceará estava com a glicemia em 15,quando o padrão dele,que viemos a saber depois era de 400.

O mais impressionante foi descobrir que aquela pessoa fraca que conhecíamos,na crise ganhou

força de mais de 10 homens.

Foi uma luta para o restringir e fazer a infusão do soro.

Eu sai lesada,ele conseguiu morder minha mão diversas vêzes.

Logo ele estava recuperado e o pessoal médico foi embora.

Conseguimos comida pronta com alguns vizinhos e o colocamos comendo do lado de fora do barraco,

enquanto limpávamos tudo.

Sob o colchão,era um ninho de baratas.

Além disso,encontrei 3 facas,enormes,verdadeiramente assustadoras,armas mortais.

Retirei do local tudo que pudesse oferecer perigo.

Queimamos tudo,colchão,lençóis,cobertores e demos uma limpeza geral naquilo que se dizia

ser um quarto.

Deixei ele sentadinho comendo do lado de fora,o quarto limpo e pedi à ele que deitasse um

pouco,tentasse dormir e quando estivesse bem fosse até a minha casa.

Queria saber quem ele de fato era e de onde viera.

Algumas horas depois ele chegou apoiado numa bengala feita de um pedaço de árvore.

Caminhava com mais dificuldade que antes,estava mais decrépito que antes,mas estava limpo

e tinha dormido numa cama limpa,sem a companhia das baratas.

Sequer tocou no desaparecimento das facas.

Convidei-o a sentar e me contar sua história.

-Qual teu verdadeiro nome ?

-José Antonio da Silva (Fictício).

-Tua idade ?

-48 anos.

-De onde de fato tu és,porquê como te chamam de Cerá,eu sempre pensei ser esse o teu estado.

-Não,eu sou do interior de Pernambuco,Carnaiba de Flores.

-E tua família,onde está ?

-Não sei dona Tê,não sei se ainda vivem,mas são todos lá da Carnaiba.

-Então,me dá os nomes de teus pais e de teus famíliares.Vou achá-los.

Após essa pequena inquisição,servi um farto café e o mandei para casa,aguardar notícias.

Eu não tinha a menor esperança de resultados.Como poderia encontrar alguém no sertão Pernambucano?

Mas,eu tinha algo maior..a Fé,e além disso,sou teimosa,jamais desisto de algo.

Entrei na Internet,nas salas de Pernambuco.

E fui de sala em sala,explicando a situação e pedindo ajuda para localizar alguém que pudesse

me dar uma direção da família dele.

Numa das salas,uma moçinha de 18 anos me deu a luz.

Ela me disse o seguinte :

-Eu tive um tio com esse nome,mas ele morreu faz 25 anos.Eu nem o conheci,mas espera,tem um senhor passando aqui na frente

de casa que pode confirmar se de fato era esse o nome de meu tio.

Aguardei ansiosa a volta dela.

Ela voltou,já confirmando que de fato era o nome do tio,e me trazendo o número do telefone

de uma irmã dele,que morava em Carnaiba.

Agradeci,confirmei para a moça que ele não estava morto e fui telefonar para a dita irmã.

Quando eu fiz a ligação,uma senhora muito simples,mas de uma gentileza sem tamanho me atendeu do outro

lado.

Perguntei à ela se sabia do paradeiro do irmão,ela me disse que ele sumira já faziam 25 anos,

e,que todos já o consideravam morto.

Eu disse que não,que ele estava vivo,morando em Santa Catarina,mas em condições precárias

de saúde.Que ele precisava voltar para casa,e queria saber se eles o receberiam lá,pois

onde ele estava,ele já não tinha mais condições de permanecer.

Ela teve uma reação oposta ao que eu esperava.Ela vibrava de alegria,agradecia à Deus.

Pedia-me o tempo todo para jurar que não era uma brincadeira,que ele estava vivo.

Ele ainda tinha uma mãe,idosa,mas viva e que chorava quase todos os dias a morte dele.

Eu disse,então façamos o seguinte:Busca tua mãe,que eu vou buscá-lo,pois ele tem dificuldades para caminhar,

e dentro de meia hora ele vai estar aqui e falará com voces.

Assim procedi,e, meia hora depois uma senhora idosa chorava no sertão de Pernambuco,enquanto falava

com um filho que considerava morto.

Foi para mim,e para eles também, uma emoção sem tamanho.

Todos os familiares queriam que ele voltasse para casa,mas havia um problema;não dispunham

de meios para mandar buscá-lo.E agora ?

Eu disse:Não se preocupem;consegui encontrar voces,vou encontrar uma maneira de mandá-lo

para casa também.

A partir dessa data,eles me ligavam todos os dias e marcavam uma hora para falar com ele.

Enquanto isso,eu batalhava junto à orgaõs públicos,pedindo ajuda.

Não consegui nada.Nem mesmo uma promessa.Mas não desisto.

Começei a comprar e pedir roupas usadas;ia fazer um brechó.

Num curto espaço de tempo,eu já tinha material suficiente.

Era chegada a hora de Agir,um mes já tinha transcorrido desde o encontro da família.

Eu tenho muitos amigos na serra catarinense,e foi lá que fui vender as roupas.

O prefeito de uma pequena cidade na serra,me ofereceu o salão de festas para realizar a feira.

Era domingo e todos os colonos viriam para a missa,portanto,era a hora exata para vender.

Chegamos cedo e a fila nos esperando já era enorme.

Eles mesmos se ocuparam de retirar os sacos dos carros e organizar nas mesas.

Precisávamos de no mínimo $ 1.800,00 para a viagem dele ser segura.

Eu sabia que conseguiria.

Não precisei fazer muita força.Por volta de 10 horas da manhã,já tínhamos o dinheiro suficiente

Deixamos a feira aberta e fomos almoçar na casa do prefeito.

Uma coisa que nos chamou a atenção,é que enquanto almoçávamos,pessoas vieram comprar,e por

não estarmos presentes,ali permaneceram,sentadas,sem tocar em nada,nos esperando.

O respeito e a consideração que tiveram por nós,foi algo inenarrável.

Em retribuição,doamos todas as roupas que sobraram para a primeira dama,asim ela faria

também uma boa ação,doando as roupas para aqueles que não puderam vir comprar.

Participamos da Missa e ao término,agradecemos e nos despedimos.

Descíamos a serra exultantes.Tínhamos conseguido.Ceará iria para o seio da família dele.

Na manhã seguinte,cedo,fui comprar as passagens.Sobrou dinheiro.

Por ser diabético ele teria que levar muito docê para comer na estrada e muita água.

Fizemos quatro sacos enormes de viagem com água e docês.Sobrou dinheiro ainda.

Compramos então umas roupas para ele,pois as que tinha,estavam em estado deplorável.

Ainda sobrou dinheiro,que decidimos entregar à ele somente quando já estivesse dentro

do ônibus para evitar que ele pudesse gastar com drogas ou bebidas.

Eu não sabia que existiam duas rotas para chegar até Carnaiba e por não saber comprei a que

agente me indicou.

Naquela noite,chamei Ceará na minha casa e disse que ele partiria na noite seguinte,para

Carnaiba pela rota de Mossóro.

O homem entrou e pânico,não iria por essa rota de maneira alguma.

Perguntei o motivo,e foi aí que eu tive minha surpresa maior.Ele me disse:

-Faz 25 anos,que eu era casado e descobri que minha mulher me traia.Eu e o amante dela

trabalhávamos juntos na construção de um prédio e eu matei ele.

Trabalhávamos já no último andar e eu o joguei lá de cima.Para não ser preso,entrei num

desses caminhões que descem para o sul vendendo redes e nunca mais dei notícias.

A família dele mora nessa rota onde eu terei que descer e sabendo da minha chegada,eles

certamente irão se vingar.

Daí,eu perguntei:existe uma outra rota que seja segura para ti ?

Ceará respondeu: Sim,por Serra Pelada.Tem um posto de gasolina onde é parada obrigatória dos

ônibus,e minha família poderá estar lá me esperando.

Telefonei para a agência e mudamos a rota.

Na noite seguinte,terça-feira,sob uma forte chuva,embarquei Ceará num ônibus,rumo à sua

família.

Comuniquei para a família o caminho que ele estava fazendo e fiquei aguardando que eles me avisassem

da chegada dele.

Antes da partida dele,eu já ficara sabendo que ele já estava viuvo faziam alguns anos,que a família do morto dera razão para o acontecido e que ele não tinha motivos para tanta preocupação,mas preferi ficar calada,deixei as explicações para que a família dele,passassem,caso achassem necessário,

Na sexta-feira,pela manhã,a irmã dele me ligou dizendo que ele havia chegado e que tudo

estava bem.

Bem,era relativo,pois os problemas deles estavam apenas começando.

Ceará era uma pessoa de difícil convívio.Exigia mais do que a mãe podia oferecer.

Eram pessoas pobres,de parcos recursos financeiros.O dinheiro que ele levara havia acabado,

e como ele fumava e bebia,vivia em conflito com a mãe.

Enquanto isso,por aqui,no sul,eu pesquisava um certo advogado que tinha retido documentos

referentes à um pedido de auxílio-doença junto ao INSS.

Descobri que o pedido saira e que o advogado estava recebendo.

Briguei muito,mas consegui reaver os papéis e o mandei para a irmã de Ceará,de quem eu me

tornara amiga.

Foi uma grande ajuda,pois ela conseguiu fazer a transferência para lá e assim ele tinha

algum dinheiro;não para contribuir com a mãe,mas para manter os próprios vícios.

O tempo passou e eu recebia regularmente notícias do estado dele.

Algum tempo depois,eles me avisaram que ele estava internado num hospital em Recife,em

estado grave.

Haviam descoberto dois tumores no fígado já com metástases em outros orgãos.

Ele não teria mais muito tempo de vida.Todos estavam resignados,pois puderam estar com ele

nos últimos momentos de vida.

Após uma semana,de manhã bem cedo,meu telefone tocou.Era a irmã de Ceará.

Ele acabara de partir.

Ela sofria,mas me agradecia,por ter oferecido àquela família tão distante;pessoas que eu jamais

encontrarei pessoalmente,mas que fizeram parte da minha vida.

Deles sempre recebi muito carinho,e de fato lastimei a morte;mas também agradeci ao Pai,pois

sabia das condiçõesde miserabilidade em que ele vivia aqui,e que lá,mesmo vivendo em pobreza,

ele estava ao lado dos que o amavam de verdade.

Dessa maneira,Ceará,um homem que era de Pernambuco,passou pela minha vida.

Acho interessante o fato de ele ter morado tantos anos no mesmo local sem que ninguém nunca tenha

se importado em saber suas verdades e lhe oferecer alguma ajuda.

Mas...assim caminha a humanidade.

Esteja em paz,meu amigo Ceará...onde quer que esteja.