Sentimento amargo

Depois de mais de 358 dias ,acordo e não sei o que fazer.Dia 25 de dezembro é um dos poucos dias que não trabalho. São poucos estes dias, menos que os dedos da sua mão esquerda.

Decido andar um pouco, estou bem fora de forma e meio barrigudo.Não acho que devo correr sem uma boa preparação, faço um leve aquecimento e saio.

Moro perto da avenida Inajá de Sousa e vou no sentido do centro. Já encontro algumas pessoas correndo leve, lembro do teste Cooper. Um ancestral metodo de avaliação física.Claro que estas pessoas não tem a menor idéia do que seja. Estão apenas correndo e outras caminhando na ciclovia.Eu prefiro andar na calçada no sentido oposto ao trânsito,não tem com bicicletas. Eles praticamente jogam as bikes por cima da gente. Indo no sentido oposto ao trafego também posso evitar algum atropelamento. Uma vez na Alameda Notheman no Campo Elíseos , um taxi foi tirar uma fininha. E me derrubou as cinco e meia da manhã,o taxista devia estar com sono.Nem parou,para me socorrer.Foi embora e eu me levantei . E continuei a correr, mancando e sangrando da perna e do braço.A gente aprende assim, na paulada.Não devo lembrar o passado,isto ainda magoa

A avenida esta cheia de loucos,as pessoas fingem que não veem eles. E eles ficam invísiveis e desaparecem feito sombras ao meio-dia .Mas eu os reconheço e os vejo claramente. Conversando sozinhos nos pontos de onibus.Ziguezagueando no meio do asfalto. Discursando nas esquinas, murmurando sons guturais sentados na grama.Uma mulher canta animada ,deitada na sarjeta, Não são apenas moradores de rua ou necessitados.São homens e mulheres doentes.Alguns estão caminhando , passam por mim .Vejo seus rostos transfigurados,olhos esbugalhados, bocas tortas.Que posso fazer,estou apenas andando.

Um carro passa correndo, tocando a buzina na outra pista. Jovens vindo de festas,devem estar bebados.Fico preocupado,podem causar algum acidente. Ou talvez darem tiros nos transeuntes.Quem sabe o que estes desajustados podem fazer? Outro dia uma funcionária levou uma mãozada na bunda,ficou bem assustada. E se eles param o carro?

O tempo esta perfeito,não esta quente e uma leve garoa molha os óculos. Um rapaz passa com uma cachorro na coleira.Sinto saudades do meu pastor alemão. Eu mudei de casa para um apartamento, e como não tinha lugar . Demos ele para uma funcionária que mora em Francisco Morato.Ele morreu,não durou quatro meses.Talvez de doença ou maus tratos. Ela disse que um moleque feriu ele com uma pedrada ou um ferro.Mas acho que não foi apenas isto. Não devo ficar lembrando o passado.Tudo me faz chorar,todo dia recordo o meu falecido pai.Lembro de correr com ele pelo Bom Retiro de madrugada,ele sofria mas me acompanhava. Já se passaram mais de 5 anos. O passado nem sempre é bom,o presente é que me faz um ser vivo.

Olho em frente, caminho. Passo pela ponte da Freguesia do Ó,esta em obras.Embaixo nas novas pistas, os carros voam em alta velocidade.Não vejo caminhões,não tinha percebido. Hoje é feriado de natal, os caminhões pararam.Um onibus freia,um carro desvia.Quase um acidente. Tenho de ficar atento ao fluxo de trânsito.Hoje tem muitos domingueiros se arriscando a sair com os carros. O rio Tiete fede , sempre este cheiro de agua podre.

Políticos tem carro com ar condicionado não se importam com a poluição.

Na avenida Marquês de São Vicente passo pela Unib ,pelo prédio da IOB Antes qualquer problema na contabilidade eram eles que resolviam, agora nem sei se existem .Passo pela Duratex que fabrica a valvula hydra. Lembro que eles fecharam a valvulas P que fabricava valvulas industriais Na calçada da avenida Paulista em frente a um edifíco tem uma , no canteiro .Acho que devia ser a sede deles. Conheci um funcionário dos velhos tempos que andou até ensinando o filho do dono do banco Itau como era a usinagem da fabrica .Antigamente tinha muito mais empresas em São Paulo,mas a maioria se mudou para o interior. Aqui na Agua Branca de grande mesmo ficou somente a Cia Santa Marina do grupo francês Saint Gobain . Já entrei varias vezes na fabrica ,nunca me deixam entrar a pé .Entregas apenas de carro mesmo que seja um pacote de um quilo. E cada seção tem um recebimento de entregas.Mas daqui alguns anos constroem um condominio de apartamentos de luxo nesta enorme area.Como na Vila Leopodina, mais de cinquenta prédios foram ou serão inagurados este ano. Por todo lado vejo placas de vende-se apartamentos.

Caminho e vejo os campinhos do Nacional .Passo em frente ao centro de treinamento do São Paulo e do Palmeiras.Que estão muito bem cuidados.Não entendo a razão da prefeitura ,não construir piscinas e clubes nesta região para a população.Ela cede os terrenos para clubes milionários por vinte ,quarenta anos. E o povo não se aproveita de nada.Fica sem distração nem lazer.

É ! O povão não vale nada para esta elite que manda em São Paulo.

No farol crianças pedem esmolas, brincando com bolinhas. É o circo da miséria,da exploração infantil. Continuo andando não uso relógio , o meu quebrou a pulseira faz um 8 anos.Não me preocupo com as horas.O tempo não existe, é apenas uma ilusão.Alguém passa de carro e me xinga.Mas não entendo o que ele disse.Estou ficando meio surdo. Na calçada encontro uma molinha de plastico colorido, um daqueles brinquedos de loja de 1,99. Eu tenho uma loja de 1,99. Lembro do meu pai vendendo molas de aço bicromatizado para os camelos no centro da cidade, meu pai tinha uma metalúrgica. E quando não fabrica manometros e bombas para cadeiras de cabeleleiros. Ele inventava de fazer tachos esmaltados para pasteleiros ou molinhas para crianças. Mas este brinquedo foi de temporada, passou a novidade. E acabou. Não devo lembrar o passado , porém é muito dificil conter este sentimento amargo.

Passo por vários carros estacionados, em frente a uma danceteria.Nem sei como se chamam estes lugares. A música ainda toca ,alguns jovens dormem nos carros.Devem estar bebados,outros caminham indo embora.Noutro farol,uma prostituta embaixo de um orelhão conversa com um motorista.Não sei o que podem conversar,eu nunca conversava. Vamos! Era o que eu dizia.Alguma mulheres veem em sentido contrário, na outra calçada.Andam ligeiro,devem ser copeiras ou outras empregadas dos móteis aqui na Barra Funda.Passo por um porteiro,estava uniformizado. Estão indo para o serviço, mesmo no feriado.

Etâ Vida dura!

Alguns jovens estão sentados do lado de um posto de gasolina, outros encostados numas portas de aço.Conversam alto , animados. Devem estar bebados ou drogados, os carros estão parados na contra-mão. O rádio ligado e as portas abertas. Os funcionários do posto abastecem alguns carros .

Enquanto uns se divertem outros trabalham.

Uma mulher de vestido curto e salto caminha na minha frente. Faz um dez minutos,parece que saiu da festa.Mas anda sózinha,deve trabalhar na rua. Eu devo ser meio preconceituoso. As pessoas são bebadas,drogadas,prostitutas ou loucas. Noutro farol duas mulheres conversam ,encostadas na janela de um carro importado.Uma delas é enorme , deve ter mais de 1,80metro. Tenho certo receio por mulheres grandes. Deve ser instinto de perservação, elas podem ser violentas e quem segura.

Chego na estação do metrô , Terminal Barra Funda. Já tem bastante movimento, e uma fila com mais de quinze pessoas num balcão de café.Olho o relógio quase nove horas,então percebo que estou de calção e camiseta andando rápido no meio do corredor. Eu dormi com esta roupa,nem me troquei para sair de casa.Mas ninguém repara .Desço algumas escadas e estou em frente ao Memorial da América Latina.O pai de um amigo era diretor financeiro. Um amigo que não tenho notícias a mais de 4 anos. Os amigos foram-se, todos eles, O memorial acho que não serve para quase nada.Um monte de cimento e vidro sem vida , é o que é. Preferiria que tivem construido um grande hospital, um local privilegiado. De fácil acesso,tem metrô, trem e onibus. Que posso fazer ? Não mando no governo .Aqui era um pátio dos trens, acho que uma oficina das locomotivas. E tinha muitos galpões,grandes armazéns.Lembro que passava na rua Tagipuru ,sinuosa e de paralelepípedos.De noite quase não tinha iluminação.Um lugar bem tenebroso.Acho que tinha também um frigorífico ou matadouro por aqui, lembro do cheiro . Mas eu era garoto,gostava de fantasmas.

Passo do lado de outra boate, a calçada esta repleta de garrafas de bebidas.Os seguranças ainda estão na porta.

Onibus e lotações quase vazios passam a toda na avenida.Viro na avenida Pacaembú , que em tupy-guarani quer dizer ribeirão das pacas.Nas margens do Tiete ainda tem algumas pacas, mas com esta reforma das marginais serão todas atropeladas.Passo pela rua Margarida , e lembro que a corrida de São Silvestre passa por aqui. Depois passo por baixo do viaduto que em cima tem o elevado Costa e Silva também chamado de Minhocão. O bairro das Perdizes e do Pacaembú agora só tem consultórios e clínicas médicas. Perdi a conta, depois de mais de trinta. Antes eram firmas do interior que tinham escritórios nesta avenida arborizada. Que quando chovia virava um rio.Acho que tem mesmo um rio , mas esta canalizado.Um helicóptero faz barulho e aterriza num prédio ao longe. Acho que na avenida Angélica ou na Consolação.Não sei onde é este helioponto,mas mesmo num feriado. Esta gente não usa o carro.Na frente do majestoso e belo estádio chamado de Paulo Machado de Carvalho, caminho noutra direção.Rumo a avenida Cardoso de Almeida.

Um trolebus passa com as laterais pintadas com imagens antigas da cidade.Nem lembrava que eles ainda existiam.Tomei alguns para Santana e para a Aclimação.Mas recordo mesmo dos bondes.E eles acabaram do dia para a noite.Eu morava na rua Santa Ifigênia e eles viravam da Duque de Caxias e desfilavam embaixo do prédio Julia Cristiani também chamado de Ouro Verde. Sei que tinham bancos de madeira e desciam a avenida São João , passando pela Praça Marechal Deodoro , pela Igreja das Perdizes em direção a avenida Francisco Matarazzo. Naquele tempo não tinha o Minhocão.Este monstro de cimento e aço enfiado no meio dos prédios.

O bairro do Pacaembú tinha tantos casarões,casas antigas e pequenos palacetes.Sempre que passo por estas ruas sinuosas, fico imaginando se no alto daquele morro. Atrás daquelas enormes janelas de vidro ainda mora a Rita Lee. Acho que os Titãs e os irmãos Campos eram destas bandas também. Quem sabe?

O corpo não esta cansado,acho que estou bem apesar do calor.Minhas mãos latejam. O que cansa mesmo é pensar. Não paro de relembrar coisas do passado,sou um beco das memórias.E isto machuca.

Em vez de subir para a avenida Dr.Arnaldo e passar em frente ao cemitério do Araxá, onde meu pai repousa.Viro a esquerda e começo a fazer o caminho da volta. Ainda esta cedo, mas não bebi muita água e posso ficar desidratado.

Na avenida Sumaré muitas pessoas fazem jogging. Sózinhas ou acompanhadas.Outras andam de bicicletas e algumas caminham. Caminho pensando na mais de uma centena de vez que passei por aqui .Muita coisa mudou e pouca coisa mudou. A avenida continua a mesma,só não vejo os taxistas lavando o carro na bica do lado do muro. A sorveteria fechou , a loja de plantas fechou. Uma lanchonete , um buffet , uma drogaria , um bingo e um posto de gasolina também.Um sino toca mas não sei onde esta a igreja.Deve ser pelos lados da PUC.

Aumento o ritmo.Passo do lado do Palestra Itália na rua Turiassú , pelo shopping West Plaza. Subo no viaduto Antártica. Aqui embaixo onde esta um estacionamento e um conjunto de prédios de escritórios ficava a Matarazzo. A fábrica do conde Matarazzo o homem mais rico do Brasil, um grande mecenas das artes. Parece que ainda vejo a portaria e os caminhões entrando e saindo.Eu jogava bola depois da linha do trem, passava pela frente dos correios e pela Sotema e ia para os campos de varzéa. Que ficavam onde esta hoje o Terminal da Barra Funda. Engraçado onde foram parar aqueles enormes tratores e os barcos?

Quando estudei no cursinho do Objetivo na avenida Paulista, o pessoal dizia que os seguranças traziam a bisneta do Matarazzo para a escola. Já que eles moravam na outra esquina e depois dinamitaram a mansão para poderem demolir.O passado é um livro de história devo me concentrar somente no presente.

Vou caminhando pelo viaduto Antártica , passa um metrô depois passa um trem.Cruzo a avenida Marques de São Vicente. No meio da praça. Crianças pedem esmolas, mais de uma dezena. Agora já é um negócio em larga escala.

Pego a avenida Ordem e Progresso,a ponte do Limão que também esta em obras. E não tem onde os pedestres andarem . Mas quem se preocupa com isto. Passa outro corredor solitário, pelas passadas não é um profissional .Apenas um homem muito esforçado.

Ando pela marginal em direção a rodovia Castelo Branco, passo por dois motéis. Os canteiros com a grama e aos arbustos sumiram. Foram arrancados sem piedade. Muitas empresas tem seguranças e enormes cachorros . Lembro do meu pastor alemão , eu caminhava com ele todo domingo depois do almoço. Ele ficava cansado e com sede , mas nunca reclamava. Cachorros são bons companheiros ,não reclamam. Agora ele deve estar enterrado em algum terreno baldio

Continuo andando pela marginal. Passo pelo Estadão , pelo Carrefour Limão, pela loja do Kalunga , pelo motel Estúdio A , pela escola de samba Rosas de Ouro.

E entro novamente na avenida Inajá de Sousa,tento manter o passo. Já tem dezenas de pessoas caminhando no ciclovia .Algumas com crianças,cães de todos os tamanhos, bicicletas com rodinhas.

Passaram cerca de cinco horas,o tempo não existe.Estou quase de volta a vila Bancária, um lugar sem graça. Como muitos na periferia da zona norte de São Paulo

Carlos Assis

Freguesia do Ó

São Paulo SP

carlos assis
Enviado por carlos assis em 26/12/2009
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