Para isso fomos feitos...

“Como posso ser feliz, se ao pobre meu irmão,

eu fechei o coração,

meu amor eu recusei...”

Balada da caridade

Sempre penso no que uma comemoração praticamente universal, tradicional para quase todos os povos como é o Natal Cristão, significa para cada pessoa, professe ela algum credo ou não. Não preciso ir longe para constatar o quanto o sentido religioso da festa tem sido negligenciado. Basta dar uma zapeada nos canais de notícias e nos deparamos com o contraste e o esdrúxulo: shows de bandas que promovem a baixaria, o luxo absoluto dos concursos de decoração, da ostentação das “ceias natalinas” ou os flashes da miséria dos excluídos em várias partes do país. Penso também que o que era para ser coletivo, ganha cada vez mais características individuais.

Embora vá a praticamente todas as confraternizações natalinas dos grupos que participo, confesso que não sou chegada a grandes comemorações. Minhas lembranças de infância mais caras do Natal, são quase todas ligadas à religiosidade. Era um “dia santo” como fazia questão de afirmar minha avó materna Antônia. Vestíamos nossas “roupas de festa” e ficávamos ouvindo as músicas natalinas no serviço de alto-falante da igreja, enquanto esperávamos a missa do Galo. Às vezes não aguentava a espera e dormia antes: perdia de ver o presépio armado na igreja, os cânticos e o orgulho de me sentir gente grande, dormindo de madrugada.

Vez ou outra aparecia um parque e a festa ficava muito melhor. Ver o mundo do alto de uma roda gigante era demais! Imaginar-me voando, indo a tantos lugares incríveis era a minha fantasia favorita e o Natal daquele ano era lembrado com muita saudade ao longo do novo ano que viria.Adolescente e já morando em Maceió aguardava com expectativa voltar para a casa nas férias, mas a comemoração em si já perdera a magia da meninice e foi em meados de um dezembro que se abateu sobre minha família uma tragédia: perdemos um dos nossos para a guerra da violência urbana e tivemos que sepultá-lo na véspera da festa e nossos Natais jamais seriam como sempre foi.

Porém a fé, o sentido da união da nossa família ressignificou nossos natais. Vivemos o nosso luto, mas, aos poucos, a chegada de novos membros, a alegria de suas presenças, o sentido de gratidão ao Criador por nos oportunizar alegrias e vitórias aos invés de mais tristezas, nos fizeram olhar para o futuro e, melhor ainda, aprender que é na partilha que está o verdadeiro espírito do Natal: alegrar-nos e dividir com quem precisa mais que todos nós de viver a alegria a união, o convívio solidário e amigo.

Há alguns anos minha família, por iniciativa de minha mãe que faz aniversário nesse período, organiza um Natal para as crianças do entorno do sítio onde eles moram. Cada vez mais “a turma” cresce e esse ano mais de cem crianças lotaram nossa casa no dia de Natal.As lembrançinhas são simbólicas mas há sempre uma pequena celebração falando de coisas que talvez não compreendam na sua totalidade mas, sabem da nossa alegria em recebê-los ali, brincar com eles, partilhar nosso lanche e, principalmente, nossos filhos, parentes e amigos sentirem que o espírito do Natal, para cada um de nós dessa família, significa o direito a uma vida digna, cultivando a paz, as boas relações, a solidariedade.

Minha grande- enorme Família- somos dez filhos e mais todos que dela derivam - reúne-se no Natal não por tradição, obrigação, mas pela alegria que é estarmos juntos, rezar junto, chorar, sentir saudades de quem está longe, passar horas na cozinha e reclamar da pilha de pratos e panelas para lavar, brigar (não é porque é Natal que não sai uns “arranca rabos”...), apartar briga de criança e estresse de adulto, se cansar, dar risada, ser feliz. “Para isso fomos feitos:Para lembrar e ser lembrados/ Para chorar e fazer chorar/Para enterrar os nossos mortos —Por isso temos braços longos para os adeuses /Mãos para colher o que foi dado/Dedos para cavar a terra (...)”*

Este ano nossa mãe fez setenta anos e nosso pai setenta e seis. Que Deus nos conceda a graça do seu convívio por muito tempo ainda para que muitos Natais sejam comemorados com esse clima de amorosidade e respeito ao aniversariante maior. E no fragmento da letra da música do saudoso amigo Edécio Lopes meu desejo de que o espírito vivo do Natal permaneça em nós para além do calendário.

“Parabéns Jesus, meu menino adorado, neste seu aniversário, que é por nós comemorado. Abençoa esta gente da terra de Santa Cruz, venha nós o vosso reino de luz PARABÉNS JESUS!!!Edécio Lopes

*Fragmento do lindo POEMA DE NATAL de Vinícius de Moraes