Iniciação ao Fumo (Depoimento de Viciado)

Iniciação ao Fumo

Acreditamos que existe algum projeto divino, para transformar o Brasil no cadinho, onde será fundida a nova raça.

O palco dessa história narrada por um fumante inveterado, que procurou um grupo de ajuda para tentar vencer o vício, era rua pacata de pequena cidade. Rua pacata, mas muito representativa desse cadinho da miscigenação.

Numa das esquinas residia família constituída por pai negro e mãe portuguesa. Vizinha a essa ficava a casa do fumante inveterado, que tinha como avós um casal imigrante da Itália, como mãe a filha do casal e como pai, um tipo caboclo, bem moreno e descendente de portugueses, índios e negros.

Vizinha à casa do fumante inveterado e em frente a um enorme e branco sobrado, que servia como sede do Consulado Americano, ficava outro grande sobrado onde residia família constituída por pais libaneses.

Na rua os libaneses eram os de melhor situação, entretanto, generosos, eram os que recebiam toda a molecada da rua. Junto ao filho caçula dos libaneses a molecada da rua usufruía da sofisticada estrutura para brincadeiras: pequeno campo de futebol; mesa de pingue-pongue, que também era utilizada para disputas com os times de botão; e um quarto cheio de brinquedos.

A imagem multicolorida daquela molecada jogando futebol no campo da mansão dos libaneses nos conduz à conclusão de que somos caldeirão de formas da espécie humana.

Nenhum dos moleques, principalmente o fumante inveterado, pode ter esquecido Dona Rosa, avó e matriarca daquela família libanesa.

Dona Rosa, praticamente, não falava nossa língua, mas sua autoridade era incontestável. Quando chamava o neto para o almoço, encerravam-se as brincadeiras e todos “batiam em retirada”. Entretanto, na hora farta do lanche, todos eram convocados por aquela voz rouca de tanto fumar.

Dona Rosa ficava sempre sentada numa cadeira de embalo em vime ou dando ordens, ou fumando, ou cantarolando músicas de seu passado, ou pigarreando e tossindo, ou cochilando.

Contou ao grupo de ajuda que nunca esquecera a marca do cigarro de Dona Rosa – “Bulldog” e nem tão pouco como se iniciara no vício.

Narrou sua primeira experiência com o cigarro.

Certo dia, estava disputando uma partida com times de botão com o neto da matriarca. A voz rouca e autoritária ordenou ao neto para lavar as mãos e para que me convidasse ao almoço, pois seria servida especiaria libanesa e fazia questão que a experimentasse.

Depois do almoço acompanhei todos na mesa a tomarem um café que não fora coado, como era o costume na casa de meus avôs italianos.

Dona Rosa reiniciou sua rotina na cadeira de balanço: nos chamou, ordenou ao neto que acendesse um cigarro para ela. A ordem foi cumprida de pronto. Brisas de superioridade iluminaram o rosto inocente do neto caçula, pois somente homens poderiam fumar.

Crianças são transparentes. Deixam claros seus sentimentos e pensamentos para os adultos. E, naquele momento, em especial, meus lábios virgens de um trago, estavam quase implorando à Dona Rosa, para fazer o mesmo que seu neto. Ah velhinha transviada! Quantos prejuízos sua autoridade liberal causou...

Dona Rosa, o neto e o hoje o fumante inveterado saborearam o mais famoso “mata rato”, ou “estoura peito” da cidade – cigarros Bulldog. A cada tossida e engasgada que dava sucedia um sorriso rouco de Dona Rosa, como a desafiar-me a continuar.

Para encerrar, quero dizer a esse grupo ao qual vim pedir ajuda que, hoje, apesar de ter a pretensão de abandonar o vício do fumo, curvo-me, rendo-me e repito aquele primeiro gesto patrocinado por Dona Rosa.

Sou consciente de que a autoridade e o domínio que a matriarca exercia sobre toda a família eram irrelevantes se comparados à autoridade e o domínio que o cigarro exercia sobre ela e hoje exerce sobre mim.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 03/01/2010
Reeditado em 09/01/2010
Código do texto: T2008593
Classificação de conteúdo: seguro