Meu Pai

MEU PAI

Crônica de Roberto Carlos Cardozo

Ele era um homem rude, com pouca instrução, mal sabia escrever o nome, extremamente supersticioso e muito inteligente. Tinha a profissão de correeiro, para quem não sabe o que faz o correeiro, eu explico: é aquele que trabalha com couros, fazendo encilhas para cavalos. No vernáculo, aquele que fabrica ou vende correias e outras obras de couro.

Um homem de caráter forte, temente a Deus e respeitador das leis constituídas. Mas, tinha um gênio de cão, as coisas tinham de ser do seu jeito. Não aceitava opiniões alheias em seus assuntos particulares. Amigo dos seus amigos estava sempre disposta a ajudar o próximo. Lembro-me que certa vez, um vizinho de sitio, chegou trazendo dois frangos, magros, para trocar por dois frangos gordos do seu terreiro, pois havia recebido visita e queria preparar uma “galinhada” e como os seus frangos estavam magros, queria ver se ele tinha dois gordos para a troca.

Em poucos minutos, o visinho saiu carregando dois frangos gordos, que um só valeria pelos dois que trouxera. E por incrível que pareça foi no taco, sem que o vizinho tivesse de dar qualquer retorno. Na época não entendi o tal negócio. Hoje sei que ele fez a troca para ajudar o seu vizinho.

Quando ele tinha ainda a fazenda, a qual arrendou para ir morar na cidade e depois no sitio a que me referi antes. Era época de tosquia, havia no galpão de encilha, mais de dez homens esquilando o rebanho de ovelhas. Na época eu era pequeno, e ouvia dizer que um dos esquiladores fora corrido a relho pelo papai. Mais tarde, quando podia compreender resgatei a história pó inteiro, que foi assim:

A tosquia das ovelhas era feito por tarefa, o tosquiador, tinha de retirar a lã com o uso de uma tesoura manual, fazer o garreio e o fardo de lã, para receber uma ficha, que no final do dia era trocada por dinheiro. Acontece que um dos trabalhadores, querendo trabalhar rápido, estava dando pegõens no couro das ovelhas ao tosquiá-las. O velho, que na época, não era tanto assim, advertiu-o por duas vezes, na terceira, mandou parar o trabalho, e pediu as fichas para acertar a conta, pagou o homem e o despediu. Este ficou zangado e começou a dizer desaforos. O velho pegou o relho e ocorreu a relhaços campo a fora.

A velha fazenda no extremo sul do Rio Grande: Como gostava quando ele me levava a cavalo para percorrer o campo. Seu cavalo baio, da raça Normanda, chamado Barril, com tamanho suficiente para acomodar aquele taura desenvolvido. Eu, sentado na parte frontal das encilhas, com as duas mãos grudadas na lã do pelego e segurado por aquela grande mão, que ocupava todo o meu ventre, sentia-me seguro e me deliciava com o passeio. Para mim, era a plena realização de uma criança.

Oh! Petiço gateado! Como foste tolo e audacioso ao desafiar o taura magnífico. No campo ninguém conseguira levá-lo até o curral. Quando chegava na porteira, embestava, dava meia volta e disparava. O grande gaúcho resolvera pegá-lo. Mandou encilhar o cavalo baio, chamado Barril, calçou suas botas rangedeiras, feitas de couro cru. Amarrou o par de esporas nos calcanhares das botas, laço de vinte braças nos tentos, montado no maravilhoso corcel, dirigiu-se à fração de campo onde se encontrava o petiço gateado. Ao se aproxima, o pequeno cavalo, logo percebeu e disparou. O centauro desamarrou o laço dos tentos, armou a laçada e esporeou o baio, que saiu em disparada no encalço do gateado. O tropel era ouvido da cerca onde nós estávamos a apreciar a cena. Quando o baio se aproximava, o petiço caborteiro trocava de rumo. A perseguição durara, se me lembro bem, mais de dez minutos e nenhum tiro de laço tinha sido dado. O petiço já não fazia as manobras tão bruscas, quando em uma disparada reta. O taura rebolou o laço pela primeira vez e o arremessou. A laçada foi se fechando no ar, quando o diâmetro não era maior do que um metro, entrou na cabeça do petiço e se fechou no pescoço. Cavalo e cavaleiro diminuíam a velocidade, fazendo com que o laço apertasse o pescoço do animal levando-o a diminuir a disparada. Laçado o petiço, que era manso, que apenas disparara por saber que ficaria por seis meses no piquete, seguia o baio até a entrada do curral.

Lembro-me quando aquele homem forte falecera em primeiro de janeiro de 1970. Fazia mais de cinco anos que não via o meu velho. A última vez que o vira, nos seus sessenta e cinco anos, ainda era um homem forte. Sabia então que um câncer estava lhe destruindo. Não pude conter a emoção, uma profunda tristeza, que nem sei como expressar, tomou conta do meu ser. Aquele grande homem parecia ter encolhido. Velho e alquebrado pelo tempo, consumido pela maligna doença, era apenas um esqueleto coberto por uma pele escurecida, pela péssima falta de oxigenação do sangue.

O tempo, em sua marcha inexorável, tudo vence, tudo transforma, reduzira o meu herói, o meu ídolo máximo, para mim, o homem mais forte do mundo, mais maravilhoso, inteligente e bondoso, em um frangalho. Mal me reconheceu. Segurei sua mão gelada e, ao me ver nada disse. Porém, seus lábios esboçaram um leve sorriso, seus olhos brilharam. Beijei-lhe a mão, algumas lágrimas brotaram nos meus olhos, correram pela face até se juntarem no queixo. Seu último suspiro ocorreu quando segurava minha mão. A morte chegara para aquele grande homem. Restou-me o desejo de ser, para os meus filhos, apenas uma pequena parte do que ele fora para mim.

rocado
Enviado por rocado em 04/01/2010
Código do texto: T2010267
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.