Zé Perequeté

Corria o ano de 1952. No pequeno pátio de cimento do Colégio Rezende, na rua Bambina, em Botafogo, bem atrás da famosa loja americana Sears, que hoje já não existe mais, e do lado de uma Delegacia de Polícia, no Rio de Janeiro, o bedel Zé Perequeté, como acontecia todas as manhãs, bradava a plenos pulmões, tentando, em vão, diga-se de passagem, impor disciplina e ordem para um bando de adolescentes irrequietos e teimosos. Cena rotineira na chamada hora do recreio.

Alguns, como eu, jogavam um improvisado futebol, servindo de bola uma tampinha de refrigerante, numa correria louca pra lá e pra cá, sendo os chutes nas canelas uma desagradável regra, sem qualquer punição, é claro, a não ser o xingamento, como forma de amedrontar o adversário. Era uma sola de sapato por mês, sapato Tank, com aquela chapinha na ponta, que era pra agüentar essas refregas “futebolísticas” matinais. Os mais comportados e obedientes se limitavam a ir para a cantina, onde comiam seus sanduíches com coca-cola, guaraná ou grapete( a fanta uva de hoje). Outros, mais precoces e mais velhos, a idade variava de 11 a 15 anos, todos cursando o ginasial, se enfiavam nos banheiros e iam fumar, às pressas, um cigarrinho, sendo inevitavelmente apanhados em flagrante pelo Zé e apresentados ao Diretor, para o castigo máximo: três dias de suspensão do colégio, com anotação na carteira, com o ciente do castigo a ser assinado pelo pai ou mãe. Não sei o por quê,mas a assinatura invariavelmente era sempre da mãe...

Todo esse caos acontecia entre nove horas e nove e meia da manhã. E o nosso Zé Perequeté tinha que vigiar essa gente toda em condições físicas precárias, já que havia perdido uma perna na segunda guerra mundial, nos campos da Itália.

Claro, nós, adolescentes, não levávamos em conta a deficiência do Zé, que acabou sendo apelidado de Zé Perequeté, o que o deixava bastante irritado. Quanto mais ele gritava, mas a turba de alunos gritava em uníssono: “Perequeté, Perequeté, Perequeté...”

Interessante, neste simpático resgate da memória do nosso Zé, não me recordar de algum de nós sentir alguma compaixão por ele não ter uma perna, obrigando-o a usar uma muleta de madeira. Na verdade, aqueles jovens não viam ninguém como deficiente, mesmo que houvesse alguma deficiência, isso era um mero detalhe a que não dávamos a menor importância, daí as brincadeiras aparentemente violentas ou desprovidas de compaixão com relação ao Zé, sem uma perna, míope, usando óculos e com o rosto envelhecido prematuramente.

Lembro-me até de uma cena, vamos dizer mais forte, em que esse grupo de alunos mais precoces, do qual eu não fazia parte, embora admirasse a coragem deles, cercaram o Zé, aborrecidos com a perseguição implacável dele. Neste cerco, todos gritando Perequeté, Perequeté, alguém arrancou a muleta do Zé, jogando-a para um colega. O nosso disciplinador, pulando com uma perna só, igual saci, tentava recuperar sua muleta, sem conseguir, pois ele ficou na roda, com a muleta sendo atirada de mão em mão, feito o olé do futebol. Depois de um tempo, a muleta foi entregue numa boa ao Zé, que, para minha surpresa, naquele dia, não se queixou ao Diretor da escola, logo interpretado, na nossa santa sandice, que ele havia finalmente aprendido a lição e que agora em diante ele iria ser mais tolerante com as diabruras dos alunos, o que logicamente jamais aconteceu.

Embora este fato seja considerado politicamente incorreto, para citar a terminologia dos dias de hoje, invenção dos americanos, nos obrigando a fingir um certo constrangimento “bondoso”, dando um nome bonitinho, como por exemplo, possuidor de necessidades especiais, posso extrair um dado bem positivo do espírito daquela maravilhosa época de nossa adolescência e que redundou em benefício para o Zé, que também nunca se comportou como um “coitadinho”. Pelo fato de que o tratávamos como se ele jamais tivesse a deficiência física, nunca ter sido insultado por não ter uma perna, não resultou nele qualquer complexo de inferioridade, em razão de sua deficiência. Pelo contrário, o nosso amado Zé era bastante altivo.

A aparente maldade era o “mal” da idade e o que queríamos era somente brincar, mesmo que para isso tivéssemos que de vez em quando jogar a muleta do “coitado” do Zé para o alto!

Gdantas