O artigo 120 dos Estatutos da Gafieira







                                  Tudo aconteceu nos idos de 1960, na cidade maravilhosa.                                                 Éramos quatro amigos inseparáveis. Todos na faixa dos 18/20 anos. Tínhamos acabado de fundar um Clube, sem sede, o Clube da Mijada Universal (C.M.U).
                                  O Presidente era eleito sempre no dia 31 de dezembro, na passagem do ano, quatro votos e voto secreto. O Jorjão, o mais velho, era sempre eleito. Havia um certo respeito do grupo com a inteligência e a cultura do Jorjão, poliglota, aluno nota 10.
                                 Tanto isto era verdade, que quatro anos após o incidente que vou contar, ele passou para o Itamaraty, sem fazer cursinho, sem nada, direto.
                                 Para competir e não ficar muito atrás do nosso Embaixador, fiz questão de elaborar a nossa Constituição, copiando, claro, o modelo da Constituição Federal, porém muito melhor, já que só tinha uns oito artigos e no máximo uns três parágrafos.
                                 Pela nossa Constituição, o direito à liberdade na noite era absoluta, cláusula pétrea, mesmo.Assim, depois de uma noitada de chopp, os quatro podiam sair urinando pelas ruas desertas na madrugada de Copacabana, como um direito universal.Isso era o máximo da travessura dos jovens naquela época, onde não havia drogas nem violência. Nunca encontramos nem bandido, nem muito menos a polícia, que naquele saudoso tempo, podia dormir à noite inteira sem ser incomodada.
                                A "farra" era nos fins de semana e só ficávamos em bares que tivessem o nome começando com a letra s. Santarém, na praia de Botafogo, Sereia e Seleto, ambos em Copacabana. O Seleto, apesar do nome respeitável, no Posto 6, era o mais escrachado. Era no Seleto que encerrávamos nossas atividades, lá pelas 4 da matina,tomando chopp e jogando conversa fora.
                               Acabei entrando por um atalho. Não é a história do CMU que interessa por ora, e sim, o que aconteceu comigo num baile pré-carnavalesco, no famoso Bola Preta, no Centro do Rio( ficava e ainda fica em frente a uma lateral do Teatro Municipal do Rio, perto do antigo Tabuleiro da Baiana).  
                              Havia um mito entre os rapazes que no Bola valia tudo. Pois bem, depois de suplicar muito a um primo que era escrivão de polícia, respeitado pela malandragem,afinal consegui que ele arranjasse quatro convites para o baile do Bola Preta.
                             Com os convites no bolso, lá fomos nós para o Bola. O salão situa-se numa sobreloja. Subia-se em uma escada bem estreita e um porteiro (não havia esse negócio de segurança) abria e fechava a porta rapidamente, só entrando quem tivesse o convite.
                            Quando entramos no salão, o baile já estava quente. Ficamos os quatro, deslumbrados, na borda do salão vendo a turma sambando. Os meus três amigos logo entraram na roda e eu fiquei mais algum tempo inspecionando as moças que passavam.
                            Foi quando aconteceu o inesperado. Passou uma gata linda, fantasiada de Odalisca. Quando chegou perto de mim, deu aquele requebrado caprichado de Odalisca das mil e uma noites, expressando com o seu rebolado todo o amor nos olhos e no corpo. Claro, que eu, como um bom "Califa", em retribuição, dei a minha saracoteada em torno dela. Foi o fim do meu Califado. No mesmo instante, me vi suspenso no ar por dois cavalheiros que “educadamente” me atiraram na escadaria estreita da sobreloja, fechando logo a porta.
                           Agora vem o notável de tudo que contei. Há três dias encontro na internet uma música de 1954, de autoria do famoso músico Billy Blanco, música essa intitulada de Estatutos de Gafieira. E vi que a letra se refere ao art.120, onde o distinto que dançar de pé pro ar, debruçar-se na bebida sem querer pagar, abusar da umbigada de maneira folgazã, será distintamente censurado. E o pior, se balançar o corpo vai pra mão do Delegado.
                          Refletindo comigo mesmo, cheguei à conclusão de que viver muito tem suas vantagens. Pois só agora, aos sessenta e bordoada, tive a noção exata de que naquela noite infringi o art. 120. E eu, erradamente, passei a vida toda passando por vítima da maior injustiça desse mundo,pois a minha saracoteada foi sem malévolas intenções.
                          Aproveitei e fiz logo a revisão dessa parte do meu passado, com esses novos dados históricos. Mas como sempre acontece, mesmo com essa evidência, o fato pode admitir interpretações.
                         Um amigo não concordou com essa revisão, ele acha que no Brasil as leis são aplicadas de acordo com a posição das pessoas e costumam não pegar.                             Para ele, fui expulso do salão porque provavelmente a Odalisca deveria ser mulher de um dos Diretores do Bola Preta. Fosse uma outra qualquer, a turma faria vista grossa.
                        Nada me resta a fazer do que deixar à reflexão do leitor consciente a sua interpretação do fato.

Gdantas