O Haiti também é aqui

Há anos costumo engraxar meus sapatos com o Samuel, uma ou duas vezes por semana passo na hora do almoço em seu pequeno espaço lá no shopping e ele engraxa meus sapatos ao tempo em que me coloca a par de tudo. Apesar de pessoa simples, Samuel lê o Estadão de cabo a rabo todos os dias. Tem tudo na ponta da língua, desde a bolsa até os conflitos internacionais, sabe quem morreu e quem se deu bem.

Como não poderia deixar de ser, nosso assunto na semana passada foi o avassalador terremoto que destruiu Porto Príncipe no Haiti. O país já era castigado pela miséria e conflitos sociais e para piorar tudo aconteceu o terremoto. Estima-se que 200.000 pessoas perderam suas vidas e mais de um milhão estão desabrigados. O próprio palácio presidencial se tornou entulho em alguns segundos. Logo a notícia triste tomou conta do mundo, e nós aqui no Brasil sofremos perdas lastimáveis, a Doutora Zilda Arns se foi e também muitos militares brasileiros que se esforçaram ao máximo para restabelecer a paz antes do terremoto. Um trabalho de muitos anos de nossas forças armadas foi literalmente por terra em segundos. O mundo inteiro se uniu na tentativa de resgatar pessoas dos escombros e tratar dos feridos. O Brasil não podia ficar de fora, enviamos roupas, água, remédios, alimentos, pessoas e dólares, milhões de dólares.

Alguns dias depois foi a nossa vez de presenciar tragédias em Belo Horizonte, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, sofremos com as enchentes e desmoronamentos, muitas pessoas morreram, quando nem mesmo haviam sido resgatados os corpos da tragédia de fim de ano em Angra. A solidariedade do povo Brasileiro é enorme, as tragédias se repetem e o povo está sempre disposto a ajudar de todas as formas. Os prefeitos e governadores nessas horas prometem, mas na maioria das vezes nada fazem e os candidatos de oposição esperam a próxima eleição para se valer de nossas desgraças em suas propagandas criticando os governantes atuais, a esquerda e a direita se alternam no poder e tudo acaba do mesmo jeito.

Entre uma batucada e outra com o pano de lustrar no meu sapato, Samuel me disse,

- Doutor, o Haiti também é aqui, os governantes na prática não estão nem ai para as nossas tragédias diárias, falam muito e nada fazem. Eu moro numa encosta de morro. Já fomos avisados que a encosta pode ceder a qualquer momento, mas o que fazer? Para onde eu mudo com minha família? O que eu ganho aqui engraxando dá para comer e para umas roupinhas de vez em quando, mas já perdi a esperança de ter uma casinha num lugar onde não encha de água e nem tenha desmoronamento. O Haiti tem problemas de gangues e violência, e nós aqui doutor? Não temos o mesmo? Quantas são as balas perdidas toda semana? Quantos são os policiais e civis mortos todos os dias nas grandes capitais? Alguém se sente seguro andando nas ruas ou morando na periferia e em morros como eu? O governo devia nos ajudar com uns punhados de dólares também. Pode ser até os dólares de cuecas ou das meias. Têm deputados, senadores e vereadores demais. A coisa melhorou um pouco nos últimos anos, não posso negar, mas eu continuo morando na encosta do morro, quando saio de casa durante a chuva fico agoniado deixando minha família por lá. Fico agoniado esperando meus filhos voltarem tarde da noite pra casa. Não quero esmola não, quero apenas um financiamento a longo prazo que eu consiga pagar. Pode ajudar o Haiti sim doutor, temos que fazer bonito para conquistar nossa vaga no conselho permanente da ONU, mas que não se esqueçam de nós, dos nossos terremotos diários.

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 24/01/2010
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