Noite

“Na minha Alma há um balouço

Que está sempre a balouçar

Balouço à beira dum poço,

Bem difícil de montar...

… Mudar a corda era fácil...

Tal ideia nunca tive...” – Mário de Sá-Carneiro

Hoje de madrugada, noite cinzenta, a Lua esconde-se entre as nuvens. Sem o seu luar, abraçando-me, num pedaço de céu procuro as estrelas. Persigo o arco-íris.

Mergulhei na imensidão da noite e recordei os meus passeios de carro desvairados. Em procura de tudo e de nada, apenas respirando e saboreando a noite.

É na solidão da noite que me movimento. Já um pouco trôpego, entre whiskies e seu degelo. Rindo e um pouco barulhento. Noites absurdamente compridas. Os amigos, brindes eternos, rumo à ebriedade. Tudo se esfuma nas recordações. Tempos idos, muito felizes, embora cheios de erros, naturalmente.

“Vender e arrepender-se é melhor do que não vender e se arrepender”.

Sempre às voltas com o carro, procuro soluções. Uma utopia em forma de esperança.

É o jogo da noite:

- Sustento-me no seu gume.

O sol teima, não quer poente. Devagar desaparece no crepúsculo, dando o lugar à Senhorita Lua, com o seu manto, cobrindo os rostos na escuridão. Uns bonitos, outros feios.

Apenas rostos, esgares contorcidos, perdidos entre o eléctrico das luzes.

Os amantes também procuram o seu abraço.

Olham-se na penumbra.

Escondem-se dos olhares indiscretos.

Amam-se numa aventura sob o luar.

Tentam comprar o amanhecer juntos,

Pago em demoradas carícias.

É sob essa luz que a cidade ganha uma vida peculiar. Umas vezes quase o Inferno de Dante. Os sem-abrigo são constantes, deitados nas entradas dos edifícios, apenas cobertos de papéis.

A miséria mal vestida e escondida dos olhos, durante o dia, sai à rua na noite escura.

Indigentes, escolhem seus lugares, longe do frio e do vento.

Momentos grosseiros, gente desajeitada corre em direcção aos autocarros. Apressados, medrosos. Dos restaurantes saem os últimos clientes já ébrios. Perdidos na noite, longe de casa. Longe do lar quente, procurando animação.

Misturam-se com outros de olhos arregalados, procurando vítimas. Crime sai à rua sob a ténue luz nocturna. Meliantes sedentos percorrem as ruas em busca das suas presas. Noutros pontos homens e mulheres vendem sexo a troco de dinheiro. A luxúria toma conta da cidade à noite. Bares e ruas expondo a oferta, sob a dureza da noite. Humilhação procurada a troco de dinheiro. Do conforto fácil. Histórias tristes, sofrimento em cima de sofrimento e, ainda, cabe a mágoa de terem de vender seu corpo.

Mais um pouco. Só mais pouco. Subo mais uma rua, lembro:

- Já passei aqui (risos)!

Acendo um cigarro, coloco um cd. A rádio é demasiada barulhenta. Escolho em andamento, uma colectânea de chill-out. Preciso de vogar. Ao som baixinho da música, ajeito o espelho distraidamente, olho para trás, alguém apressado, tenta ultrapassar-me. Encosto à berma, lentamente, sem parar, seguindo meu percurso.

Quero espreitar o rio. Desço Mouzinho e pela rua adictos e consumidores casuais, espalham-se pelo passeio esperando a saída da Polícia. A zona histórica, património mundial, é também património dos traficantes. Ansiosos pela sensação efémera da droga, outros escravizados eternamente pelo vício, aguardam nervosos.

Junto ao Douro, na margem do Porto, a noite ainda pulsa nos bares. Passo em direcção a Gaia, pelo tabuleiro inferior da Ponte D. Luís, construída por Eiffel. Rodo na cidade quase fantasma. Respiro demoradamente as sensações de luta e abnegação das gentes, entranhadas no cinzento da pedra.

As luzes são encadeantes, estou só nesta viagem, o pendura abandonou-me a meio. Sigo junto ao rio, apenas protegido por ralis, vendo a água a metros de distância abaixo de mim.

Rodo até à Afurada, zona piscatória de Gaia. No mercado local, os pescadores, vindos da faina, entregam, seus cabazes. Sim, eu adoro sentir o ar nocturno. Entra em mim. A água assume muitos reflexos. Mais à frente o rio e mar encontram-se numa acalmia ansiada.

Sim. Volto à estrada. Coloco AC/DC. Ao som de “This house is on fire”, acelero desenfreado. Cada velocidade, atinge o pico de rotações binárias. Em menos de nada, rodo a mais de 140 km por hora. Meu corpo fica tenso, seguro o volante. Acelero sem receios, tomando o controlo da viatura, gingando o volante nas curvas, evitando o seu despiste. Suo, lentamente, frio. Meu corpo está sob uma rigidez incontrolável, os reflexos estão na ponta dos pelos do meu corpo arrepiado.

E falo comigo:

Preciso de ver o mar…

Sigo, sabendo o caminho, mas, pouco me interessando pensar nele. Só acelerar ao longo da estrada longa. Atravesso a ponte móvel de Leça, uma das poucas da Europa, e vou até ao mar.

Na marginal, a água salgada confunde-se no horizonte. As suas ondas de espuma branca não. Sorrio. Cumprimento-o:

- Boa noite sua realeza (risos).

Mando saudações para Neptuno. Naturalmente, imaginando que de volta mande umas sereias (risos)…

Paro junto a uma falésia. Colocando a frente do carro fora do terreno. Engato a marcha-atrás, puxo travão-de-mão.

Abro a porta, olho. Espraio a vista. Nos dias quentes, gosto de dobrar as calças, tirar as meias e sentir a areia, descendo pelo escarpado rochoso da falésia. Adoro andar descalço. O chão frio mantém-me em contacto com a terra, numa condutividade estranha, mas deliciosa (risos).

A noite sempre me atraiu. Sempre me conquistou.

Outra coisa que gostava era de viajar de noite. Sempre gostei. Em trabalho ou férias, saia pela noite e rumava ao destino. Jantava sempre em lugares atascados, onde a comida me recordava a casa e o vinho é um néctar digno de Baco.

Via as cidades adormecidas.

Por vezes parava, no meio de nenhures, apreciando a quietude. Ser louco tem as suas contingências (risos). Um silêncio enorme. Apenas o restolhar das árvores, barulhos quase imperceptíveis dos animais. Longe um cão late, tornando na noite o seu ladrar temerário.

Sigo, sabendo qual o destino. Conduzo a uma velocidade cruzeiro, saboreando a frescura nocturna. Vidro aberto deixando o vento frio, quase gélido tocar o rosto. Inspiro. Suspiro. O meu momento é chegado:

- Sou rei.

- Sou um vagabundo em quatro rodas.

- Sou liberdade.

Sem destino, apenas observando. Degustando o momento da solidão. Voo nas asas dos sonhos, esperanças. Em algo que queremos. Desejamos que se realize. A noite é nossa confidente em muitos pecados.

Aprendi a não me confessar, apenas a me perdoar.

Regresso a casa, o movimento da cidade faz-se relutantemente, numa preguiça eterna, esperando a decisão da alva. Tímida até pulsar forte. À porta das padarias os cestos dançam freneticamente, a gente que teima em não ir para a cama - como eu - junta-se em grupos procurando satisfazer a fome. Aqui e ali as pessoas começam a dirigir-se para seus trabalhos, suas vidas.

O mercado junto a minha casa há muito que acordou. É vida na escuridão da noite. Na madrugada, as pessoas riem e trabalham afadigadamente. Num espaço, entre muita malícia, palavrões, cheiro a peixe, cheiro a fruta, cheiro a vegetais, cheiro a flores, todos riem como que inebriados pelo perfume da noite, esperando o amanhecer. Delícia de gentes!

Viajei assim esta noite na solidão e sob um céu cinzento sem luar. Mergulhei em recordações para longe, tendo por companhia a noite, essa eterna conselheira dos desafortunados. Sinto a falta do teu luar Lua.

PS: Hoje não levo o pão para o pequeno-almoço com meus pais (risos).

Kadú
Enviado por Kadú em 24/01/2010
Reeditado em 25/01/2010
Código do texto: T2048424
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