A CAMA
Manda a caridade cristã que a gente visite os enfermos,mas,essa visita que fiz a D.Veveva.não foi uma obrigação,foi um prazer.
Essa senhora nonagenária, que nunca perdeu a alma de criança, era uma velha amiga da minha mãe e fazia (quase)parte da família há muitos anos.
Alegre, despreocupada, criou filhos e viu chegar os netos e bisnetos com a alegria de menina que ganhou sua primeira boneca.
Entrei no seu quarto que cheirava a lavanda e até tinha uns laivos de santidade e logo a avistei, deitada entre lençóis de linho,recostada no centenário leito de jacarandá que antes serviu de descanso a seus pais,avós e bisavós.Essa ânsia de estar sempre mudando de casa e móveis é coisa de classe média e pequenos burgueses,sem nome nem tradição.
Olhando a cama monumental, de cabeceira alta onde rosas entalhadas formavam um belo buquê sustentado por Amor e Psiquê, fiquei ruminando sobre esse móvel de importância vital na vida dos humanos,que é a cama.Nela nascemos,amamos e morremos.Pelo menos era assim,antes das modernidades dos hospitais e enfermarias coletivas,onde a privacidade se esvai e toda a miséria humana é exposta a olhos indiferentes.
Quanta coisa importante se desenrola nesse exíguo espaço de madeira talhada; quantos ais de felicidade, quantas aventuras,quantos sonos reparadores ou noites de insônia,quanta dor,quanta felicidade!
As camas antigas parecem sempre cheias de fantasmas do passado, parece que todos que por lá descansaram deixaram um pouco de si,da sua essência,um perfume sutil de passado.
As noivas que passaram ali a sua primeira noite de amor, levantado,enfim,o véu de mistério que envolve a procriação.A descoberta do amor ou a triste cruz do dever;lembremos das uniões por conveniência,sem amor,sem desejo,tão comuns nos séculos passados.
Tão diferente das largas camas das cortesãs, com seus macios colchões de penas de ganso e seus edredons de seda e matelassé;naquelas camas ,fortunas familiares escorriam pelos dedos,perdia-se tudo até mesmo,a alma.
Neste mesmo móvel , homens desesperados terminavam suas vidas não agüentando a miséria e o remorso.
Mas, havia o lado alegre. Crianças vinham ao mundo soltando seus vagidos inocentes, logo, logo acariciadas por mãos delicadas que as levava aos seios;mãos puras e maternais cumprindo o seu papel de perpetuar a espécie.O marido olha extasiado!A jovem mulher se sente imensamente feliz;pais,avós,todos juntos celebram o milagre da vida.Pois aquela coisinha enrugada e chorosa é o prolongamento daquela família,a certeza da continuidade,é a ressurreição da carne.
E a morte, a indesejada das gentes!Quantos últimos suspiros de saudade ou alívio estas madeiras ouviram e guardaram!
Muitos gritos, muito sofrimento,muita ansiedade,lágrimas que molharam os lençóis, gritos de dor e tristeza,aflição,angustia!
A cama simboliza a vida e nela a vida se desenvolve.
E o sono,momento perfeito de repouso e lassidez!
Minha amiga acordou do seu cochilo que eu velava. Sorriu. Acomodou-se entre os travesseiros de pluma, apanhou o seu crochê e tascamos a conversar,enquanto o sol se punha no Porto da Barra,enchendo o mar de ouro líquido.
 



Miriam de Sales Oliveira
Enviado por Miriam de Sales Oliveira em 28/01/2010
Código do texto: T2055914
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