SOU O DIABO, MUITO PRAZER

Alavanca tinha 1,95 e talvez até dois metros de altura e por desajeito de postura, de perfil sua silhueta formava um esse. Seu nome de batismo eu nunca soube.

Falava manso e tinha o sotaque mineiro inconfundível ao colocar tudo no diminutivo. "Bebim, bonitim, poquim, ondecotô, pópô” e assim ia contando seus casos.

Estava na quarta pinga, a tarde já ia embora quando de longe um raio riscou o céu.

Alavanca ajeitou-se no banco do buteco, bebeu a pinga e quase junto, tomou do feijão batido que o dono do bar dava de tira gosto.

Pigarreou e com o olhar pendendo para aonde o raio havia riscado o céu, começou: Na minha terra, lá pelas bandas de Rio Casca, tudo de ruim é de responsabilidade do diabo.

Criação que morre, foi Ele. Porteira que quebra, ele. Riacho que seca, Ele. Galinha que não sai do choco, Ele. Safra que não vinga, Ele. Vaca sem leite, Ele. Raio que assusta os homens. Pode ter certeza, foi arte do Cão.

Lá ele parece dono de tudo. Manda e desmanda sem a menor cerimônia.

Eu não tenho medo dele, porque eu já fui o demônio uma vez, falou olhando para o chão e pediu outra pinga.

Uai! Alavanca. Este caso eu não conhecia.

Pois é, mas foi assim: Eu tinha dezessete anos e trabalhava como retireiro.

Você sabe, retireiro é aquele trabalhador que retira leite e aparta as vacas dos bezerros.

Nas terras que eu trabalhava ficava sob as ordens de um capataz, homem de confiança do dono da fazenda.

Era um negrão atarracado, forte como a peste e ruim como a morte.

Todos os conheciam como Chico da Tala. Pegou este apelido por não largar por nada um chicote com uma tala de meio metro de comprimento que tinha como acabamento em sua ponta, tirinhas que seguravam cinco esferas de aço.

O apetrecho vivia dependurado no seu braço esquerdo e usa aquilo para bater no gado, na mulher e nas filhas.

O homem é bruto e ignorante. E eu fui gostar logo da filha dele a Neide. Se ele ao menos desconfiar, eu já estava morto.

Ai é que começou a desordem. Morávamos na mesma fazenda. O velho não deixava as mulheres sair para nada. Só domingo na missa na cidade, assim mesmo sob o olhar furioso de pai.

A única maneira que eu tinha de ficar um pouquinho com a neguinha era de madrugada, bem antes do Chico da Tala levantar.

Fazia assim: Eu esperava escondido atrás das bananeiras, observando a casa do homem. Quando a Neide passava pela janela aberta, carregando uma vela acesa, era o sinal.

Ela descia para ir se lavar na bica e eu caia em cima da bichinha.

E assim ficamos quase um ano. Até que em uma madrugada do mês de agosto, daquelas, escura, fria e feia, e eu indiferente ao sereno que caia, lá estava de olho na janela.

Até que um momento a lamparina passou acesa na moldura da janela. Eu dei um tempo de mais ou menos o mesmo tempo de contar até 40. Desci animado, e logo ali na bica estava a Neide, de costas, querendo pular o ribeirão para alcançar a bica.

Eu, doidinho de vontade dei-lhe um abraço por traz e lasquei um beijo em seu pescoço.

Neste momento, o que eu pensava ser Neida, deu um berro apavorante, e quando eu vi a Neide tinha virado o pai dela.

Acho que soltei um grito ou um berro, sei lá! Larguei o homem e aí foi a vez dele. Chico deu um segundo berro e conseguiu sair da imobilidade em que ficou e, nem pulou o ribeirão, passou por ele chutando e berrando e enfurnou no mato.

Eu dei a meia volta já sabendo que agora mesmo, daí a pouquinho eu ia morrer. Não tinha como fugir.

A alternativa que eu achei foi ficar no curral, apartear as vacas e começar bem mais cedo o tirar o o último leite da minha vida e esperar a morte.

Contam que ele já havia matado uns quatro. Tomou alguns anos de cadeia, mas não se emendou.

A última dele foi em Ponte Nova num bar ele encontrou o seu desafeto, o Mário, que dizia que namorava a filha dele e sem respeito, ia embuchar a neguinha e não ia casar.

Chico da Tala entrou na porta do bar e barrou a saída de todos. Tirou um punhal da cintura e gritou para o Mário que ele estava vendo o mundo pela última vez. Separando os dois a mesa de sinuca. Ai aconteceu o que ninguém esperava.

Chico jogou o punhal no chão perto de Mário e gritou que, com uma bosta daquela, ele matava com as mãos e não precisava do punhal.

Como um gato, Mario pulou e rapidamente apoderou-se do punhal. Agora com mais confiança ele deu dois passos à frente com o aço apontado para o Chico, falou alto “Quem vai morrer, velho safado?”.

Chico aplumando o corpo replicou: Você e agora!. Num instante tirou da costa a garrucha Laporte de dois canos, calibre 32.

Foram dois tiros certeiros na testa de Mário que morreu ainda segurando o punhal. Sem ligar para o defunto avisou a todos com voz bem alta: Vocês viram, foi legitima defesa!

Desta morte Chico da Tala foi absolvido.

Não conseguia arranjar desculpas suficiente para me livrar do que ia acontecer.

Cheguei a pensar: Vou falar que sou veado e que amo o Chico. Não! não ia dar certo. Seria até pior

E pensando, maquinando uma desculpa decente eu enxerguei por debaixo das pernas das vacas as botinas do homem chegando, acompanhado das filhas e da mulher.

Pensei, chegou a minha vez. A comitiva parou onde eu estava. Chico estava irreconhecível. Amparado pela mulher com o olhar para o vazio e tremendo as mãos.

Não tinha cor, estava pálido, encurvado. “Vamos levar ele para o Padre benzer e depois para o hospital”.

E determinou: Se toma conta de tudo ai Alavanca, disse-me a mulher. E eu me sentindo mais seguro perguntei: o que houve com o Chico, homem tão valente?

E a mulher disse o que Chico não conseguia falar:

O diabo pulou na sua cacunda na beira do ribeirão, enfiou a língua de fogo em seu ouvido, soltando peidos de enxofre.

Quis puxar o Chico para as profundezas do inferno, babando uma baba quente como o ferro derretido em sua costa.

Chico lutou como pode para não ser tragado pelo buraco e, num golpe saiu das garras do Demo. Mas ele era forte demais. Deu-lhe um coice que jogou o Chico do outro lado do ribeirão. Ele agora esta sem fala e mal consegue andar.

A mulher levou o Chico para o hospital em Ponte Nova e eu me fartei na sua filha que ficou sozinha no rancho com o diabo em pessoa.