Na Porta do Céu

Na Porta do Céu

- Olá, bom dia – disse eu – posso entrar?

O porteiro, um tipo de 2 metros e 10 de altura, me olhou de cima a baixo com rasgada ironia. Depois, com as sobrancelhas, parecia divisar um vulto atrás de mim.

- Por que você acha que pode entrar aqui? – inquiriu, sorrindo.

- Por que...hummm...- pensei um pouco - porque eu leio. Isso. Sou um leitor.

Atrás de mim, um gajo de pele tostada e mãos calejadas segurando uma enxada, bufava impaciente.

O porteiro dirigiu seu olhar para ele e disse:

- Faça o favor, senhor, pode entrar, já estávamos aguardando-o. Seja bem vindo.

Ele passou por mim, me olhou de cabo a baixo, resmungou alguma coisa e entrou. Pude sentir um frescor, um aroma inigualável quando a porta se abriu para dar passagem ao homem.

Fiquei nas pontas dos pés, para ver se distinguia alguma coisa, mas a porta se fechou.

- Ok...- fez o porteiro soprando as unhas – pelo visto você não vai embora.

Retruquei, depois de pensar um pouco, que eu não era assim tão obstinado. Que se não me quisessem lá, partiria. Resignado, mas partiria. Foi quando percebi outro vulto se aproximar. Era um entregador de pizza. Trazia uma pilha de caixas de pizza, suava, apresentou a comanda, deixou as caixas e voltou de onde viera, não sem antes me olhar com estranheza. Um anjo enorme, de 5 metros de altura, chamado Angstron, apareceu para levar as caixas para dentro.

- Vocês comem pizza, aqui? – perguntei, mais para puxar assunto.

- Não – respondeu o porteiro – comemos harpas flambadas e penas grelhadas.

- Detestei a piada – avisou o anjo, que tinha olhos profundos e voz grave.

Pelo tanto que o porteiro sorria, imaginei que fosse um bom emprego. Angstron aproveitou a pausa para observar que quarta-feira de cinzas é sempre assim, raros clientes e dúzias de curiosos. Fingi que não era comigo.

- Por que você não tenta o Outro lugar...? – indagou-me o porteiro, dando ênfase a palavra “outro”.

- O Outro...- pensei.

Entre cochichos, expressaram entre si que eu não era muito inteligente, o que me deixou ofendido e me levou a falar, de modo quase automático, que volta e meia tinha lampejos.

Perguntei, então, se era possível falar com o chefe, São..., mas eles não me deixaram completar, advertindo que blasfêmias são proibidas na portaria. Desta feita, com tato e sutileza, confabularam mais um tanto e concluíram que eu era um daqueles tipos com bastante dinamismo, embora com alguma dificuldade para perceber certas coisas. E que se o porteiro usasse de métodos mais explícitos, talvez eu pudesse compreender.

- Veja, meu amigo – começou o porteiro – as estatísticas indicam existir atualmente, no planeta, 60 bilhões de mônadas. Cada mônada leva consigo 144 almas. Isso dá uma conta de, aproximadamente...

- Ok – suspirei, com desânimo – vocês não vão me deixar entrar, certo?

Aquiesceram.

- Ei! – exclamou o porteiro – hoje começa a quaresma. Quer um conselho? Se quiser, pode montar acampamento aqui perto. Só para prevenir...

- Prevenir? – repeti, de jeito quase automático.

Angstron revirou os olhos, e ao fazê-lo, suas asas farfalharam.

Quando eu estava prestes a dar meia volta e partir, o porteiro disse:

- Não leve a mal. Quem sabe um dia...

- Só lendo, não – sublinhou o enorme anjo.

- Já entendi – resmunguei.

Foi quando outro anjo apareceu, reclamando que as pizzas iriam esfriar. Era menor do que Angstron, medindo cerca de 3 metros e 20, careca e voz de barítono. Chamava-se Bornstron. Olhou para mim de cima a baixo, então virou-se para os amigos e disse:

- Mais um?

Assentiram

- Por que não cantamos para ele?

- Sim – entusiasmou-se o porteiro – para animá-lo.

Logo em seguida começaram, extremamente afinados:

“Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato dum querubim, falou que eu tava predestinado (o careca fazia uma segunda voz em predestinado) a ser todo ruim. Desde saída minha estrada entortou. Mas vou até o fim”.

Fiquei emocionado. Há muito tempo ninguém cantava para mim. O porteiro me ofereceu um lenço, aventou que talvez eu ainda não tivesse chegado ao fim, que ali era um lugar muito bacana, mas que, pelo jeito, eu não iria entrar.

- Só lendo, não – enfatizou o anjo de voz grave.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 17/02/2010
Reeditado em 17/12/2012
Código do texto: T2091781
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