Minha cigarra de estimação.

Nunca consegui enxergar uma cigarra cantando na àrvore. Já tentei, e muito, mas parece que se camuflam, como se tivessem adquirido uma autodefesa, não só dos predadores, como de nós -que redundante- ... a exemplo das moscas, quase impossível de serem espalmadas. Já nem mais as procurava, se cantavam de um lado, eu ia para o outro, eis que ocorre o processo contrário.

Eram por volta de onze da noite. jantava sossegadamente, quando um inseto voador adentra pela janela da sala, num voo extremamente vagaroso e desengonçado. Parecia ter feito um pouso de emergência no piso da sala. Deve ser um besouro ou um zangão, pensei. Sinceramente, já não me surpreendo mais com a súbita chegada desses seres. Depois que recebi um "bom dia" de um morcego, pendurado de ponta cabeça no lustre da minha sala, e dos corriqueiros passeios dos miquinhos pelos fios dos postes, nada mais por mim seria inesperado. Bem, antes que sua imaginação saia voando por aí: Não, eu não sou índio.

Não consegui reconhecer o repentino visitante, mas minha mãe foi enfática:

- "É uma cigarra!"

Parei de jantar na mesma hora. Enfim, vi de perto aquele inseto que teima me fugir dos meus olhos nas àrvores, que só conhecia pelos livros de Biologia.

Então, fui empurrando-a vagarosamente para o lado de fora. Parecia estar machucada. Mas o que eu poderia fazer? Vai que ela resolve mostrar seus dotes artísticos e começa a cantar no meio da sala, onde eco pouco é bobagem, às onze da noite? Não mesmo.

Pois bem, com a cigarra devidamente recolocada no seu habitat natural, continuei meus afazeres. Mas não demorou muito para ela entrar novamente. Desta vez, já rendido, não esbocei qualquer reação. Pousara próxima ao computador, onde eu curtia minha enfadonha insônia, e por ali ficou. Intacta. Será que está morta? Pensei. Delicadamente, coloquei uma folha de revista debaixo dela. Pra quê? Sei lá, foi o que me veio à mente. E parece ter gostado, pois ensaiou um bater de asas, primeiro movimento até então. Respondi: "De nada, cigarra.", e continuei com minhas tarefas.

Por vezes, pensava no momento em que minha companheira começaria a cantar. Já não seria mais tão ruim assim, na verdade, estava até curioso. Mas nada. Silêncio.

Então, pesquisando no pai-dos-burros virtual, descobri que algumas cigarras possuem um canto tão sensível, capaz de passar despercebido pelos ouvidos humanos. Devia ser o caso desta. Poderia estar cantando ali do meu lado, a noite toda, e eu, do alto de minhas limitações, não ouvir. Que pena.

Por ali ficamos. Cigarra e eu. Durante toda a madrugada. Cúmplices recíprocos.

No dia seguinte, ao retornar do trabalho, encontrei-a morta, no mesmo lugar onde deixara. Por uma fração de segundo, senti tristeza. Mas não havia o porquê. A natureza seguira seu caminho normal, amanhã serei eu e você, certo?

Assim, tomado por esse -egoístico?- sentimento, deitei no sofá e cochilei. Minutos depois, fui despertado por um canto de cigarra, provavelmente vindouro do coqueiro, único na varanda. Não precisei pestanejar. Lá estava a cigarra, cantando ao caule da àrvore, bem diante dos meus olhos, dessa vez, sem qualquer dificuldade de achá-la, pelo contrário, parecia se mostrar, imponente e pomposa no seu cantar, como se cumprisse com alguma dívida.

Foi mágico...