Conselho dos Bichos

Conselho dos Bichos

Cerca de meia hora atrás estava uma balbúrdia e a coruja branca, sem perceber, tirara um cochilo relâmpago. Seu assistente, um camundongo do campo, acordou-a com um beliscão.

Todos estavam acostumados com esses cochilos repentinos da coruja, e a balbúrdia em questão era a brecha que esse evento propiciava a várias confraternizações. Um par de jegues, que deixou as esposas em casa, cochichava entre si que esse Conselho era um absurdo.

Mecanicamente a coruja acorda, ajeita toga e pede ordem, seguida pelo camundongo, que também pede ordem, embora ninguém consiga ouvir sua voz. “Vá para o seu canto e me deixe exercer”, disse a coruja para ele.

- Quem entre vocês... – indaga ela – quem entre vocês, pegou dinheiro dos outros, montou uma empresa de 800 milhões, e depois a vendeu para um correligionário, por apenas um real? Você! Foi você!

Todos bocejavam e aquele para quem a coruja apontou, um pardal, prontificou-se a responder:

- De forma alguma, excelência. Sou um pardal. O máximo que pego são sementes de azáfama para plantar por aí.

Um dos jegues gargalhou ao passo que o outro, tremendamente mal humorado, explicou que azáfama não é uma semente.

- Que importa? - retrucou o pardal para o jegue e depois, em reverência, voltou-se para a coruja – sei que espalho as sementes, pois tenho filhos e netos, que por sua vez terão filhos e netos, e é necessário pensar em suas moradias futuras. Não fui eu.

A coruja sorriu satisfeita e novamente exclamou:

- Quem entre vocês vive à custa do sofrimento alheio, crescendo desenfreadamente e pouco se importando com os...

- A senhora vai me desculpar – interrompeu o jacarandá próximo – cresço quanto eu quero, e tenho certeza de que não incomodo ninguém por isso.

Um casal de jaguatiricas cochicha: “todo o ano é a mesma coisa. Somos cada vez em menor número e essa louca dessa coruja nos obriga a vir aqui. E todo o ano esse jacarandá interrompe com a mesma cantilena”.

Educadamente, a coruja sorriu para o jacarandá e tornou a fazer a pergunta, desta feita olhando para um papagaio gordo e desmazelado.

- Você! Foi você!

O papagaio, que tinha por costume encerrar sentenças com um croooc, prontificou-se a exclamar:

- De modo algum excelência! Meu maior e único pecado é esquecer os versos de Maestrinha Chiquinha Gonzaga e de Lamartine Babo, croooc. Durante um recital, excelência...

(“Esse papagaio é extremamente prolixo”, cochichou o jegue bem humorado).

...era um recital para papagaios, excelência, esqueci tudinho e não sei porque me veio a marchinha “Eu vi”, do pianista José Francisco de Freitas, croooc. É assim, excelência: “Eu vi, eu vi, você beliscar Lili, eu vi...” croooc.

A coruja sorriu extasiada e prosseguiu:

- Quem dentre vocês enjaulou um pobre coitado que pegou uma maçã de uma quitanda, porque tinha fome? Quem? Você! Foi você!

A preguiça replicou que a única coisa que suas garras pegavam era o tronco do ipê, cada vez mais escasso. E que não, não fora ela.

A nova questão da coruja, mal formulada e aqui assim transcrita, inquiria sobre quem seria capaz de mentir descaradamente, durante anos e anos, e continuar mentindo e mentindo, depois que mentiras anteriores foram descobertas e as posteriores constatadas.

- Você! Foi você! – apontou a coruja para um Fox Paulistinha.

Cães nunca foram bem vistos durante o Conselho. São acusados de conspirar junto ao inimigo, e toda vez que são chamados essa mazela vem à tona.

O Fox, normalmente muito agitado embora hoje, a base de calmantes, replicou com olhos semicerrados:

- Não conspiramos junto ao inimigo, excelência. Apenas sobrevivemos. Se eles não nos mantém em cativeiro, se por ventura optamos por morar nas ruas, somos dizimados pelo esquadrão da morte. E depois, eu não mentiria para ninguém. Abano o rabo quando me dão comida e, olhe, vou te contar, uma gororoba mal cheirosa, tenho minhas dúvidas do que aquilo é feito, mas, se não como, acham que estou doente e, bem, Vossa Excelência não vai querer ouvir o fim da história.

A coruja sorri indulgente e passa para a próxima acusação.

O casal de jaguatiricas cochicha que não agüenta mais, até que uma anta recém chegada interrompe os cochichos e, cochichando, indaga de que trata esse Conselho, que está muito abafado, que teve de deixar os filhos em casa, quer saber, enfim, o porque de tudo isso.

A jaguatirica cedeu-lhe um assento próximo e, entre cochichos, concordou que era chato mesmo, mas advertiu que o Conselho tinha uma serventia muito importante:

- Fazemos isso para nos lembrar quem somos.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 26/02/2010
Reeditado em 16/12/2012
Código do texto: T2109083
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