ALCOVITEIRA

Mal estendeu a cadeira:

- Não falei? Aquilo é mulher direita? Só hoje é o terceiro que sai. Vai dizer que é encanador? Veio ontem. Que é eletricista? Três vezes na semana passada. Jardineiro? Nem jardim a casa tem. Deus me livre que não gosto de fofoca, mas que aí tem coisa. Coisa das grossas.

A vizinha de quem falava acenou do portão.

- E aquele moleque? Apontou para um menino sentado de pernas cruzadas no lado esquerdo do campo de futebol improvisado entre arbustos da praça.

A interlocutora olhou para trás, mas não o enxergou.

- Aquele lá, apontou, nervosa. Desde os seis anos a mãe tenta, mas de mim ninguém esconde nada. Ou você ainda não percebeu que ele não gosta da manga?

A interrogação surgiu no semblante. Encolheu os ombros. Mudou a disposição das sobrancelhas. A esquerda mais baixa do que a direita.

- Da fruta que ele gosta, eu, se pudesse, comia até o caroço.

As duas sorriram. Provavelmente continuaria a alfinetar o menino se, ensaiando passos silenciosos pela porta lateral da igreja, o clérigo contivesse as tosses e a maleta preta pouco discreta. Usava um chapéu velho, descoberto em uma das caixas do arquivo do antecessor.

- Não que eu goste de fofoca. Deus me livre! Eu odeio.

O reverendo entrou no carro, engatou a primeira e circundou a praça buzinando duas vezes ao vê-las sentadas. Retribuíram a gentileza, acenando e sorrindo como cobras no enigma iminente do golpe. O goleiro virou-se para igualmente acenar, mas antes que levantasse a mão a bola passou perto do pé esquerdo e mudou o placar. Discutiam a validade do gol.

- Detesto fofoca, mas sabe da última?

Olhou para os lados como a confidenciar um segredo.

- Soube que rouba o dinheiro da igreja. Quando do tempo do velho Bento, assim que os fiéis iam embora, entravam numa sala, contavam o apurado e escreviam tudo num livro de contabilidade. Depois que esse aí entrou, faz tudo sozinho. Não tem dinheiro para consertar o telhado, reformar o prédio, melhorar o chão, mudar a fiação, pintar os bancos ou trocar os canos que, mais de setenta anos, já estão nas últimas. Você acredita nisso? E esse carrão? Novo? Comprou com que dinheiro?

Uma viatura estacionou em frente à padaria. Um dos policiais sacou a caderneta de ocorrências. Uma senhora octogenária apareceu para relatar o sumiço do gato persa.

- E aquele rapaz? Aquele anotando qualquer coisa na prancheta? Fiquei sabendo que não agüenta nada. Só sai para fazer essas anotações sem importância. O primo do amigo da Virgínia me contou que ele é frouxo. Isso mesmo que você ouviu. Frouxo. Disse que estava numa fila do banco quando o bandido anunciou o assalto. Em vez de sacar o revólver e enfrentar a fera, correu para o banheiro e só saiu de lá quando estava tudo resolvido.

O policial olhou as duas senhoras e os garotos jogando bola, forçou as vistas numa janela aberta de um terceiro andar, voltou a espalhar os garranchos no papel oficial.

- Frouxo. Frouxo com F maiúsculo.

Um homem de músculos vistosos passou apressadamente do outro lado da rua. O menino do campo de futebol levantou-se, disfarçou e fitou o rapaz.

- Olha lá. Olha lá. Não te falei? O que eu disse? Nem disfarça. Se bem que um tipão daquele a gente tem que olhar mesmo. Onde mora? Povo estranho. Mais um bandido? Não tem cara de bandido, mas é bom ficar de olhos abertos. Que tamanho de peito! Dá até calor.

Voltou os olhos para a octogenária. O policial escutava o relato do desaparecimento, anotando displicentemente as características felinas. O sol dava os últimos acenos quando um féretro passou.

- Esse aí deve ser o Genésio, falou a mulher. Fazia hora extra. Acredita que ele, noventa anos, não queria morrer? Vai tarde. Por falar em tarde, vamos embora. Já está escurecendo. Você não tem que cuidar do jantar do marido e do banho dos filhos, hein?

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de fevereiro de 2010.