Metamorfose

Meu beijo diurno tem um gosto amargo de câncer. O café com pão, o sol de alta radiação, o microondas de 4 programações, a carteira de cigarros. No caminho de ida e volta sempre há uma piada pronta, uma vendedora de chicletes me disse um dia que a humanidade seria exterminada pela falta de atenção. Ela andou pelos carros, era uma velha de roupas feitas de Jeans encardidos, ela caminhava com uma pequena pressa batendo nos vidros dos carros. Em poucas palavras que trocamos ela me disse:

- A humanidade será exterminada pela falta de atenção – daí ela se foi com seus chicletes.

Um dia, o por do sol não será normal. Um cogumelo gigante crescera no centro da cidade destruindo casas, pessoas, prédios, carros. Pessoas desapareceram na posição que estavam e relógios contaram a história. Se um homem grandioso esbarrar no botão errado tudo está acabado. Estamos nas mãos de pessoas com mãos furadas.

O relógio corria.

O tempo acabava.

Gastava tinta de caneta no papél.

Meu beijo diurno tem um gosto de oléo de motor. No caminho de ida e volta para casa sempre há mortos e feridos, podemos sempre sermos os próximos. Imagino sempre que uma bala perdida entra pela minha janela e me acerta na cabeça, morto diante a TV, morto diante a novela, morto diante da cena em que o ator principal beija a mocinha.

O beijo dele tem gosto de câncer.

A chuva é real. Tão real quanto estar vivo. Corri pela chuva como uma criança, corri semi nu na chuva, queria pegar a água e mostrar para todos que eu estava vivo! Não era um parasita medroso dentro da minha casa esperando ser atingido na cabeça por uma bala perdida. Eu não temerei aquilo que eu não acredito. A água gelada corre pelo meu corpo, estou caido em uma poça suja, aquela sujeira sou eu. Olho para o negro céu, ele me diz coisas fantásticas, ele me diz quem sou e o que faço no mundo. Aquele ceu negro sou eu. As coisas que vi e vivi, a vendedora de chicletes, o tiro pela janela, o gosto de cancer, o microondas. Uma vida condençada em poucas palavras. As palavras sou eu.

- Um dia – dizia a vendedora de chicletes. Nem todos dão atenção, alias, ninguem dá à atenção. Um dia poderemos nem mais estar aqui e enfim fazemos as mesmas coisas de sempre. A rotina matou a poesia e como diria Nelson Rodrigues: “A TV matou a janela” – todos estes que não compram meus chicletes vão se arrepender.

Era a sua vingança.

Estou morto.

Morri e acordei no outro dia, meu beijo com gosto de microondas estala na testa de minha esposa. Ela não sorri, apenas dorme. Morri e entrei no meu carro, fui ao meu trabalho e trabalhei. Morri e voltei para casa, morri e escrevi uma carta para alguém, morri e assisti um reality show. Não é a vida real, nem a deles nem a minha.

Morri.

Com o corpo molhado as coisas passam mais depressa, a vida passa mais depressa. Essa minha comunhão com o chamado selvagem que ouvi do lado de fora da janela, e todas essas coisas que eu vivo sem querer viver. Onde estarei a manha? A chuva vai cair pelo meu corpo eternamente e eu serei sacrificado na rotina. Me transformarei e fugirei disto. Eu quebrarei os moveis, eu destruirei o microondas, eu jogarei meu carro no rio e terminarei meu casamento, serei demitido. Meu nome, o que sou, e onde estou; Tudo isso que existe não pertence a mim pois não sou tais coisas.

A vendedora de chicletes sorri para mim quando me ve livre e caminhando para a minha liberdade.