ESPELHOS (EC)

I - PARTIDO

Tudo corria conforme programado.

Os ensaios.

A música.

Os atores seríamos apenas dois.

O texto coloquial estava na ponta da língua.

Nada poderia errado.

Sempre se espera isso, mesmo quando não há mais esperanças.

No dia anterior a estréia, na despedida havia felicidade no ar.

Ansiedade transpirando.

Melhor nem pensar no que não saia da cabeça.

O telefone não tocou de manhã, como de costume. Nem atendeu às ligações. Devia estar se preparando. Ou praticando ioga. Ido ao parque relaxar.

Melhor tranqüilizar-me.

Encontrei-a sentada à porta do teatro esperando o porteiro.

Minutos depois estávamos dentro do camarim.

Ele era imenso para deleite de qualquer maquiador.

Repassamos as falas.

Falávamos de amor, sem saber se era o texto ou a realidade.

Dois monólogos que se encaixavam perfeitamente.

De repente, pediu para ficar sozinha, alegando dor de cabeça.

Sai para buscar um comprimido.

Concordou...

Demorei pouco mais de alguns minutos.

Bato à porta fechada.

Dois minutos depois, a demora era muito grande.

Forço a porta.

Caída e pálida.

Diagnóstico: Aneurisma? AVC?

Não importa.

De nada adiantaria recolher os pedaços quebrados na queda.

Nunca mais reconstruiriam o espelho...

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II - TRANSPARENTE

A bola saíra pela lateral.

O técnico pediu tempo.

Precisava armar a última jogada.

No placar eletrônico um segundo para o final do jogo e um ponto a mais para o adversário.

Nada podia sair errado.

Prancheta na mão e pó de giz escorrendo pelos dedos.

Será que alguém prestava atenção no que ele dizia, enquanto lambuzavam os rostos espalhando o suor?

Gritos na quadra e silêncio gelado na arquibancada.

Bola num par de mãos de uma mulher para recomeçar o jogo.

As outras nove correndo pela quadra.

Ameaças de passe, tropeços e encontrões num balé incompreensível.

De repente a bola voa.

No basquete o tempo só é acionado quando a bola é tocada por alguém dentro da quadra.

Quanto é um segundo?

Passou e não me respondeu.

Num salto misterioso ou planejado, uma mão encontra a bola e gira no ar.

A bola não tem a direção precisa da cesta.

O cronômetro zerado dispara a buzina.

O jogo terminou.

Magia!

Depois de chocar-se com a tabela, a bola rola algumas vezes pelo aro.

Deve ter rodado umas mil vezes, pois quem conta este conto, aumenta um giro.

Escorre pela rede disparando o clamor da torcida.

Um ponto à frente.

Abraços e lágrimas na quadra.

Estávamos na semifinal.

Ninguém se lembrou de agradecer o vidro transparente da tabela que parecia sorrir lá do alto.

Talvez porque não fosse exatamente espelho.

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III - SEM REFLEXO

Desde o fatal e incompreendido acidente de Narciso temiam admirar-se à beira do rio.

Esqueceram a beleza. O medo a ligara a fatalidade.

Ninguém era comprovadamente feio.

Velho e o novo eram iguais.

Expressões faciais ficavam apenas na memória, mesmo mudando do riso a dor.

Com retratistas pagos, a beleza de Dorian era verdadeira?

Na areia, antes de se tornarem vidro, as esculturas se dissolviam rápido.

A maré não permitia se gravasse eternamente.

Fisionomias eram passadas de pais para netos.

As Bruxas condenadas à fogueira seriam, de fato, horríveis?

E os boatos da beleza das princesas serem proporcionais a medida do ouro do rei?

Se Chita quase fez psicanálise ao não compreender o repentino desinteresse de Tarzan quando Jane surgiu e piorou quando King Kong se encantou com Jessica, em compensação os sapos não precisavam virar príncipes para serem bonitos.

Podia se amar livremente o feio, sem necessidade da maquiagem para parecer bonito.

Não havia uma mais linda que a outra.

Assim rainhas não eram más e não faziam maldades às enteadas.

Um pouco mais difícil se identificar vampiros, fêmeas perdiam menos tempo preparando-se para ir à caça e, no circo, mulheres não se transformavam em gorilas.

Não havia o ciúme das aparências!

Essa inveja causava menos tragédias.

O espelho estava por ser inventado.

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IV – EMBAÇADO

Jane sempre tivera todos que lhe quisessem

Linda, famosa...

Sua beleza enfeitiçava a todos.

Quem não lhe tinha na memória?

A noite demorava muito tempo para passar.

Na cabeça dúvidas e insegurança.

A um passo de lhe passarem adiante e substituírem...

Tão perto do poder e cheia de admiradores, estava solitária na noite quente de verão.

Amor dividido.

Tanto lhe prometeram pela exclusividade, mas naquela tarde um deles lhe disse que estava tudo acabado.

O forte calor e o nervosismo a faziam transpirar.

Toma um banho gelado para esfriar a cabeça e sente um frio descer pela espinha.

Impressão de passos no apartamento.

Lembra-se de Hitchcock, enquanto escuta o silêncio.

Não morri esfaqueada, pensa num derradeiro sorriso, enquanto olha a cicatriz na barriga lembrando-a que breve não seria tão desejada.

Percorre com as mãos o corpo que fez o mundo suspirar. Naqueles tempos sem silicone nota os seios "começando a cair um pouco", mas a cintura não estava "nada mal" e suas nádegas ainda eram "as melhores".

Enxuga-se e pega o frasco de remédio para dormir.

Não toma e se deita enrolada apenas na toalha.

Não atende ao telefone.

No torpor pré-sono parece ver um de seus amados entrando no quarto.

Dorme.

Sono eterno.

Encontrada despida na cama, sua morte não foi esclarecida.

Na sua frieza, a única testemunha da cena final, o espelho embaçado não revelou quem esteve no local.

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N.A – Homenagem ao teatro, cinema e esporte que tanto refletem e marcam tantas vidas...

Este texto faz parte do Exercício Criativo - No Meu Tempo.

Saiba mais, conheça os outros textos:

http://encantodasletras.50webs.com/nomeutempo.htm

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 01/03/2010
Reeditado em 03/03/2010
Código do texto: T2113682
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