Há semente no teu celeiro?

Resolvi abrir o baú das recordações. Daquelas que causam muita dor, deixando um rastro de sangue, mas que o tempo, um dos lenitivos, efetua a cura. Tive que aprender na marra, que colhemos o que semeamos, e esse círculo faz parte da vida de todo ser humano.

Não me recordo qual ano aconteceu esse fato, lembro apenas que eu era uma adolescente, queria ser adulta antes do tempo, e buscava meu espaço. Prestei um favor de forma involuntária e a partir daí tudo aconteceu. Os pais de uma amiga sofreram um acidente, e ela não sabia fazer qualquer tarefa por mais simples que fosse. Passei uns três meses dando o auxílio que me cabia fazer, e no fim desse período, como um gesto de gratidão, fui contemplada com um emprego.

Passei um período na área de vendas, e dentro de três meses surgiu uma vaga no escritório e pra lá fui transferida. Após um ano, a firma estava maior, e achou-se por bem separar o escritório e deixá-lo no mesmo prédio do almoxarifado. Eu fiquei responsável com as saídas e entradas dos caminhões que entravam e saíam das sete às oito da manhã, após esse horário ficaria no escritório. Por chegar uma hora antes do horário comercial, largava às dezessete horas.

Naquele dia, tudo estava dentro da rotina. Na hora do almoço, as outras moças se ajeitaram pra tirar uma soneca, outra colega sentou à mesa do subgerente – ali havia uma quantia equivalente a R$ 600.000,00(seiscentos mil reais). Parte do dinheiro estava dentro de uma imensa gaveta e outra parte num cofre que ficava escondido dentro de uma sala disfarçada de depósito. Na época, a moeda corrente era o cruzado. E eu não vi nada de anormal no comportamento das colegas, apenas percebi que uma delas sentara à mesa e falou com alguém ao telefone. Depois saiu, só voltando muito tempo depois da hora do almoço.

Continuamos o trabalho de emissão de notas fiscais, fui conferir algo no almoxarifado, e às dezessete horas larguei. Por volta das dezessete e quarenta o subgerente deu por falta do dinheiro. Todo mundo foi revistado e claro que o dinheiro não foi encontrado. Pra quem sobrou a suspeita? Eu! A noite uma das colegas chegou e me falou o que tinha acontecido. Envergonhada me disse que, ela e as outras haviam ido a uma cartomante e a mesma dissera que quem havia roubado o dinheiro tinha sido uma moça branca, cabelos longos, alta.

Olhei pra ela e disse: Você está dizendo que quem tirou o dinheiro da firma foi eu?Não, eu não disse isso! Quem disse foi a cartomante! Mas não diga nada pro chefe, pois ele disse que amanhã vai haver uma grande surpresa e que a ladra vai aparecer. Fiquei preocupada. Meu pai havia tido um enfarte, por causa disso eu havia pedido adiantamento do salário para cobrir algumas despesas e agora, por não ter sido revistada a suspeita caía sobre minha pessoa.

Ao chegar no dia seguinte, todo mundo estava lá às sete horas. Ninguém me olhava nos olhos, nem falava comigo. Trabalhei como um robô. O patrão comprou nosso almoço e ficamos ‘detidas’ dentro do escritório sem poder nos comunicar com ninguém. Hoje percebo que ele cometeu um crime, mas na época, não sabia quais eram meus direitos.

O subgerente me chamou a parte, e perguntou se eu havia tirado o dinheiro. Dei a resposta que devia, e fui levada para a matriz. Ao entrar na sala do dono da empresa, vi que havia além dele, mais três homens, de cara amarrada e com jeito de brucutus. Meu patrão era o mesmo da história “Fui tratada como rainha...”, e ele me apresentou aos brucutus como seus colegas. Ele meapresentou como a moça que ele havia falado. Sem entender o que ele queria dizer, esperei que me perguntassem algo e ali pude dizer o que sabia. Algo que me chamara atenção e que me passara despercebido foi que durante o momento de quase cochilo eu ouvira um barulho de plástico. E foi aí que entoou o ‘bingo’. Tive que contar essa história pra frente e pra trás.

Depois de mais de uma hora de interrogatório, fui conduzida ao escritório, e a colega citada fora chamada ao almoxarifado. Não sei o que disseram ou fizeram com ela, por volta das 18 horas, ela confessou o crime e por fim, levou os três brucutus e o dono à sua casa. Ali fora encontrado todo dinheiro debaixo do colchão. Justamente naquele dia ela entrava de férias e estava com viagem marcada para a Bahia. Lembro que antes de entrar no carro, ela olhando pra mim disse: Eu confessei, mas quem roubou foi ela!

Esperei o carro voltar, todo dinheiro foi novamente conferido, pra que fossemos liberadas. Entrei em casa com o pranto jorrando, pois esse me sufocava e dilacerava por dentro. Esse pranto ficara retido para que eu não tombasse justamente quando eu mais precisava estar de pé.

No dia seguinte precisava voltar ao trabalho. Precisava olhar minhas colegas de frente, pois eu esperava uma resposta. Envergonhadas, elas me pediram desculpas. Olhei bem nos olhos de cada uma e disse: Eu não merecia isso, porque nunca desconfiei de nenhuma de vocês. Ah, vocês e a cartomante estavam enganadas! A pessoa que cometeu o erro era cheia de corpo, cabelos curtos, cor parda e de pequena estatura.

Bem que tentei esquecer. Mas naquele dia morrera a menina e minha inocência fora arrancada. Meu patrão me pediu desculpas por tudo, mas segundo ele, sempre tivera a certeza de que eu não havia tirado aquele dinheiro. Emocionada, pude lembrar-lhe que quando estive na casa de sua irmã, cuidando de tudo e de todos, tive acesso há jóias e outras coisas de valor e nenhum alfinete havia sumido.Além disso, nunca havia exigido um centavo pela mão de ajuda. Ele baixando a cabeça, falou-me: Nunca me esqueci do que você fez à nossa família. Meu erro foi deixar que você passasse por tanto dissabor, mas não podia demonstrar favorecimento. Com um nó na garganta pus pra fora minha dor e revolta da única forma que sabia: pedi demissão. Exigi meus direitos como se tivesse sido demitida e uma carta de recomendação. Saí dali rasgada, e levei anos para esquecer aqueles momentos tão terríveis. Fiz as malas e viajei pro Sul, ali enfrentei outros gigantes, e ao voltar quatro anos depois, fui chamada a regressar àquela empresa. Meu ex-patrão já não era tão rico, estava à beira da falência, mesmo assim me queria de volta como funcionária. Novamente tive que lhe dizer: Não.

Hoje, contemplo minha colheita, continuo investindo na semeadura, porque vale a pena olhar para trás e perceber que apesar dos pesares, ainda há semente no celeiro.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 02/03/2010
Reeditado em 08/03/2010
Código do texto: T2116518
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