A minha mulher Marcela

Nasci pedra. Revolta a terra, estava lá minha costela. Lascada, polida, esculpi a mim mesma. E como me sinto completa, atirei-me à vida num estilingue vindo da coragem de ser mulher. Não abdiquei de amar os homens sem me submeter a eles. Eu não apenas ganhei beijos: dei-os muito, e com prazer. Nunca fui presente, mas conquista. Não sou enfeite. Visto-os para vislumbre dos meus olhos, como um Narciso sem vergonha da sua beleza. Sou bela porque não evito os espelhos. Daqui a pouco, alguém me ligará para perguntar como vai a vida, e eu direi: bela. Farei o almoço pra família sem nenhuma sensação de senzala. Usarei minhas mãos com a mesma presteza com que manuseio o giz que me ajuda a educar pessoas. Sou livre demais para ser emancipada. Só me sinto presa a mim mesma e à velha mania de ser mulher.

Amanhã virão as congratulações. Sorrirei a todos agradecida. Este é o meu jeito de ser educada. Mas, convenhamos, todos os dias são meus e de todos. Para isso inventamos a vida. Não sou mulher para ser posta à prova. Sou eu mesma a prova de que existo para me fazer feliz. E como a felicidade exige cumplicidade, dou-me ao homem sem preocupar-me se sou a chave ou a fechadura. Gozamos ambos e isso me abastece. Gosto de ser enfeitiçada porque sou feitiço também. Enquanto mulher, sei o que me custo e sei a que custo me mantenho. Só falo sem calças. Essa é a minha maneira de ser transparente.

Quando eu acordar amanhã, antes da manhã, inclusive, não será o meu dia, mas apenas um dia para eu ser feliz e, sinceramente, concordar só porque estou viva. Então, viva eu abrir os olhos e saber se é sol ou chuva o que me obriga o dia. A labuta e a luta são os temperos do cotidiano. Minha única vantagem é a de ser pessoa, embora eu goste do vestido e colares que me adornam a alma.

Ser mulher é questão de fecundação. Fosse eu um homem, não me sentiria menor ou maior, mas do meu tamanho. Não caibo em rótulos, sou o que queriam embalagem. E como tenho o corpo ancho em mundo parco, sigo contente por ruelas tristes.

Não sei como vai ser amanhã. Se eu ganhar flores, inventarei meus jardins. Se não as ganhar – que posso?– a vida é tão sempre apressada -, estarei ao menos no olho do furacão, onde devemos estar todos.

Encerro-me sem festas, porque as vivo integralmente todos os dias da minha vida.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 07/03/2010
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