Quem Vai Pagar Minhas Férias?

A mesa estava repleta de trabalho. Eram nove processos que precisavam do andamento para amanhã, e nenhum ainda estava pronto.

Era fácil perceber que trabalharia madrugada adentro, mesmo sabendo que minha mulher não acreditaria nessa “esfarrapada desculpa”...

O mais difícil no cotidiano de um escritório de advocacia é a concentração. Quando iniciamos um raciocínio mais complexo, inexoravelmente toca o telefone. Retomamos o ponto, interfone chama. Nova retomada, um cliente que não marcou horário chega, e o que tinha marcado muitas vezes falta. E assim, da concentração à desatenção o tempo passa célere e o dia se vai.

Era o caso. O dia se desenhara exatamente como acima descrevi, com um agravante: o tal cliente que chegou sem aviso prévio, o foi no exato momento em que o céu desabara em um dilúvio pontual. Ele estava totalmente molhado, da cabeça ao dedão do pé.

Afastei os papeis da mesa, para que nada se estragasse, chamei a copeira para que trouxesse uma toalha seca e um café quente ao meu visitante inesperado.

Esbaforido o homem não esperava a licença para falar. Falava sem pausa, e montava sua história tentando me convencer que ele tinha a razão. Razão em que?

Tentei perguntar alguma coisa, mas o falatório seguia ininterrupto. Ele não me ouvia.

Em determinado momento percebi que ele era surdo, por isso não ouvia minhas perguntas. Não totalmente surdo, mas com elevado grau de surdez. É que tinha um desses aparelhinhos auriculares, o qual, provavelmente em razão da chuva, não estava funcionando.

Pude captar que o cliente potencial havia sido intimado a comparecer em uma delegacia para esclarecimentos. Na verdade pesquei isso do universo palavral que ele exarava, entre os lamentos de que nunca fizera nada e sempre fora cumpridor dos deveres.

Não era para assustar tanto, pensava eu com meus botões.

O fato é que alguns anos atrás o homem havia sido furtado e o meliante levara sua carteira de identidade. Desavisado, apenas correu à repartição pública responsável pelo documento de identificação e providenciou uma segunda via, sem se preocupar com o possível uso indevido do documento furtado.

Pois bem, o mãos leves utilizou indevidamente o documento furtado. O ladrão evoluíra em suas práticas fora da lei, atuando em diversos setores do crime. Do furto consumado ao homicídio tentado passando pela extorsão mediante sequestro e outros tantos verbos criminais. O sujeito tornara-se profundo conhecedor do Código Penal empiricamente falando.

O documento furtado havia sido apreendido pelo policial que efetuara a prisão do meliante, e o nosso personagem surdo havia sido convocado para esclarecer o porque de seu documento, verdadeiro, ter sido encontrado nas mãos sujas do paciente (é assim que são denominados os presos).

Essa era a sua história e o que ele queria é que eu o acompanhasse em sua primeira incursão em uma delegacia de polícia.

Custou quase três horas para convencer o sujeito molhado e surdo que seria fácil comprovar que ele não era culpado de nenhum crime, que seu erro consistia em não ter notificado o furto à polícia.

Àquela altura as petições que precisavam de finalização estavam em segundo plano.

A chuva tinha dado uma trégua, não sem causar pontos de alagamento pela cidade.

A madrugada seria longa...

Fomos à delegacia, tudo ficou esclarecido.

De volta ao escritório, mesmo com sono e cansado, os nove outros clientes exigiam meu esforço extra. Sucumbi.

Dia seguinte não fui ao escritório, desliguei o celular e com o noteboock em mãos fui a um galpão desativado de um cliente e passei cinco horas finalizando as nove petições. Corri ao cartório para protocolar as peças e qual não foi minha surpresa ao deparar com movimento grevista exigindo maiores salários e menos horas de trabalho aos cartorários dos fori...

Voltei frustrado ao escritório, sem conseguir protocolar nenhuma petição. Os prazos foram dilatados até o final do movimento grevista... acho que estou precisando de férias... menos horas para trabalhar e maiores honorários....será que consigo organizar uma greve dos advogados???

Almir Ramos da Silva
Enviado por Almir Ramos da Silva em 08/03/2010
Código do texto: T2126541
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