UM ERRO QUE SE PAGOU

Durante a minha passagem pela Guarda Nacional Republicana, desempenhei vários cargos. Um deles, o mais nobre de todos, é o de Comandante de Posto Territorial, uma vez que é nessa estrutura que assenta toda a razão da existência desta força policial. No exercício desta função, os conflitos em que eu sentia mais dificuldade no seu encaminhamento legal, eram aqueles casos que envolviam “saias”, porquanto, grande parte das vezes, as queixas apenas assentavam em suspeitas, e também porque a maioria dos indiciados fogem ao esclarecimento da verdade, e ainda porque o ato em si, merece por parte dos intervenientes, as maiores cautelas.
Dentro deste cenário, vou recuar no calendário ao verão de 1987. Ao tempo, eu comandava o Posto da GNR em Gouveia, quando um dia pelas 09h00, ali me é dado conhecimento pelo militar que controlava as comunicações, que tinha recebido um telefonema feito por um comerciante da freguesia de Ribamondego, que identificou devidamente, onde pedia a intervenção da Guarda, alegando que uma cigana não queria sair do quarto de casa dele por cima do estabelecimento, e onde tinha passado a noite. Ciente de que haveria muito mais para esclarecer, mandei uma patrulha a Ribamondego para tomar conhecimento da situação, e que pelo menos a cigana teria que sair da cama, pois não cabia na cabeça de ninguém poder lá ficar contra a vontade do dono, não só da cama, como das instalações.
A patrulha no local limitou-se a cumprir o que eu lhe tinha determinado, entrou na residência do queixoso, entrou no quatro, e convidou a senhora a sair. Como não acedeu à primeira, o soldado Martins, como comandante da patrulha, tirou-lhe a roupa de cima, obrigando a cigana, numa nudez total, a levantar-se, a vestir-se e a sair, mas sempre refilando: - “me prometeram casamento!”.
O queixoso encerrou o estabelecimento de imediato, bem como a residência, e chegou até mim, mesmo antes da patrulha. Contou-me então o que se tinha passado durante a noite e madrugada. Uma família cigana radicada em Ribamondego fez uma festa no estabelecimento de café, que o mesmo queixoso geria no edifício da sua residência. Nessa família estava uma mulher cigana, bem dotada de atributos físicos, com menos de trinta anos, e que fora abandonada pelo marido. Por sua vez o comerciante também vivia só, a esposa havia saído de casa uns tempos antes. Propiciou-se na conversa, que o melhor era estes dois abandonados juntarem-se e fazerem vida em comum. O comerciante concordou, deu a chave da residência à cigana, e disse-lhe que se deitasse na cama, onde ele iria ter logo que estivesse livre dos afazeres comerciais, o que veio a acontecer.
Na manhã seguinte, o comerciante rompe o acordo, e é em sequência disso que a GNR entra em ação. Ele, para evitar confrontos físicos com os ciganos, ausentou-se por uns dias para a sua terra natal, no concelho de Santa Maria da Feira. A família cigana manifestava o seu desagrado e prometia vingança, pois a quebra do acordo provocava, segundo eles, despeito pela própria família. As ameaças chegavam aos ouvidos do comerciante ausente, através não sei de quem, que fez o mesmo voltar a pedir a colaboração da GNR. O que ele me propôs, foi que eu negociasse com o pai da cigana enganada, o pagamento de uma importância em dinheiro, e que tudo ficasse como dantes. Eu não aceitei, coloquei-lhe mesmo em causa e legalidade, garanti-lhe a proteção para abrir o estabelecimento, muito embora não pudesse ser continuadamente. Mas, para ele, esta minha disponibilidade não chegava. A consciência pesava-lhe, e ele o que queria era andar tranquilo.
Perante estes factos, entendi encarregar um militar que ali tinha ao serviço, que se relacionava muito bem com a comunidade cigana, para mediar o conflito. O Queixoso avançou logo com a importância de 100.000$00 para reparar os danos morais. A parte cigana viu de bom grado a proposta, mas foi sempre alegando que era pouco. Os dias foram passando, até que o Fragoso, o militar mediador, chegou a um acordo entre ambas as partes. Ficou acertada a importância de 150.000$00, o homem regressou e abriu o estabelecimento. Aparecem de imediato os ciganos que amedrontaram o comerciante e que apenas teve tempo de chamar por mim. Fui então a Ribamondego mais o Fragoso. Em redor de uma mesa tudo ficou assente. No dia imediato, o pagamento seria feito em Gouveia, onde o pagador teria que ir levantar o dinheiro a uma instituição bancária. Acertou-se a hora, e tudo veio a acontecer como foi marcado. No entanto, ainda em Ribamondego, uma coisa mexeu comigo. A mãe da cigana, alegava ainda que a quantia de 150 contos era pouco, por outro lado o queixoso confortava-a, dizendo-lhe: - olhe que eu não tive relações com a sua filha. Aí recebeu como resposta, se não teve que tivesse, que ela não estava lá para outra coisa.
Depois de tudo normalizado, chamei o comerciante de parte e perguntei-lhe: -
Então explica-me lá! Se não foi para te “pores” na cigana, para que foi que a mandaste para a tua cama?
A resposta saiu de imediato: -
Senhor sargento, eu quando fui para a cama bem tentei, mas como ia bêbado de todo, não consegui fazer nada. Quando acordei, arrependi-me de tudo, e o que queria era que ela fosse embora.
Fiquei ciente de que o álcool causou toda aquela situação, e ainda que o dinheiro resolve tudo, até o medo. O medo, pois foi o este que fez desembolsar a importância, e não a consciência de violar um acordo verbal como o queixoso afirmava.
Importa aqui salientar que 150.000$00 em 1987 correspondem hoje a cerca de 2.140 euros, por força da desvalorização da moeda.
Esta é uma, de entre tantas estórias de vida, que constam no meu baú de recordações.



Zé Albano
Enviado por Zé Albano em 20/03/2010
Reeditado em 21/03/2010
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