Em busca de um pesadelo

Todo indivíduo que nasce nas regiões mais carentes do Brasil carrega consigo o sonho de um dia pisar em terras cariocas ou paulistanas e lá adquirir uma vida melhor e, quem sabe, até tornar-se rico. Este é o anseio de milhares de pessoas que aos poucos vão se deslocando de suas origens e esperançosos desembarcam no destino de suas aspirações e tão logo se mortificam na desilusão que os espera e passam a vagar pelas ruas como verdadeiros nômades suburbanos: sem eira e sem beira, e foi neste contexto que conheci João da lata.

O frio era um dos mais impiedosos das últimas décadas e naquela inesquecível meia-noite de julho, lá estava eu com dois amigos, como voluntários, na Praça da Sé, marco zero da metrópole, tentando minimizar o sofrimento alheio com sopa quente, pão-de-forma e peças de vestuário adquiridas de terceiros.

Logo após anunciarmos que iríamos distribuir roupas e alimentos, verifiquei que muitas pessoas acorriam em minha direção, ai aflorou-me um sentimento de tristeza, mui tormentoso, ao me ver frente àquele quadro de inumanidade bem na sala de visita de uma das cidades mais prósperas das Américas.

A exuberância das ricas edificações, protegidas com suntuosa iluminação pública, nada tinha a ver de formosura frente à realidade da miserabilidade que me deparei e que me fez lembrar das personagens do romance O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain que, de tão dramáticas e sofridas, me fez relê-lo por várias vezes.

Vi crianças e mães famintas, quase desnudas, esticadas no relento do calçamento úmido, tendo papel de jornal como cobertor e sem ânimo de se mexer do lugar. Vi homens embravecidos ao tentar tirar um pão de minhas mãos, e crianças chorando para se vestir com meu próprio agasalho; vi também, o lodo em suas mãozinhas sem banho. Vi pessoas se abraçarem para se esquentar como se amantes fossem e vi elementos drogados zanzando como se, se esquentassem com a névoa fria do inverso rigoroso e vi um homem, apenas um entre muitos, que se destacava solitário e se protegia no interior de um carrinho de rolimãs próprio de coletar lixo, e que parecia não querer compartilhar com o desespero dos demais que se aglomeravam em meu entorno.

- Quem é aquele homem? – perguntei a alguém.

- É o João da lata.

- Chame-o aqui – disse-lhe eu – ele ainda não comeu!

O homem saiu do carrinho e veio lentamente como a contar seus pesados passos, e parou.

- Pois não doutor! – disse-me ele.

Olheio-o fixamente e não me lisonjeei com sua fala, apenas senti o valor da diferença que ele se impunha frente à sua mísera condição de indignidade.

- Não vai querer um pouco da comida, senhor? – perguntei-lhe.

- Não doutor, ela não vai descer. Minha tristeza me impede.

Fiz de conta que não entendi e estiquei-lhe as mãos com pães e sopa, e perguntei-lhe o por quê da tristeza. Estás doente?

- Sim doutor, doente de angustia! Eu tinha tudo que um lavrador pode ter na vida. Tinha uma família, uma casa, minhas roças, meu gado e meu cavalo. Eu tinha paz. A ilusão me fez desfazer de tudo e estar aqui, nesta penúria. Hoje nada tenho além daquele carrinho de catar lata pelas ruas. São Paulo me iludiu e me decepcionou. Não tenho onde ficar e nem como voltar de onde vim. Virei um verme, um indesejado que no futuro só terei uma cova anônima em qualquer cemitério. Até perdi meu nome. Antes era João, agora é João da lata.

Naquele momento uma mulher se aproximou e me cochichou disfarçadamente:

- Tu corres perigo! Foi João da lata quem me disse.

Ela me disse, muito cautelosa, que aquela comida não me excluía da condição de ser vítima da violência, e bondosamente acrescentou:

- Estão tramando contra ti, saia já daqui!

Senti calafrio e medo, e com eles o desespero.

No caminho da volta fiquei a me questionar com os meus porquês e conclui:

- Por pouco não virei mais um João da lata na mão dos “caras.”

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 21/03/2010
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