Série "Ditados na Berlinda" 20: Gato escaldado tem medo de água fria?

Aprendizado. Vejo-o como sendo uma faculdade que pode ser adquirida de duas formas distintas: pelo interesse ou pela experiência. Acredito que apenas a primeira forma envolva consciência e racionalidade, pois a última é a mais primitiva e básica de todas, por meio da qual todos os animais (incluindo-se os pensantes) amadurecem e se tornam aptos a sobreviver. É com ela que os bichos são adestrados e os seres humanos, formados; e as cicatrizes, reais ou metafóricas, impressas.

As cicatrizes reais acabam sendo uma marca registrada de nossa vida, desde o indicativo de uma infância alegre e agitada até a lembrança de violências traumáticas. É como se nossa pele fosse um livro (em braile?), com capítulos variados: divertidos, tensos, cheios de suspense e aventura. Mas cicatrizes nem sempre representam uma forma de lembrança que evite que experiências desagradáveis se repitam. Um parto doloroso não indica que uma mãe não terá mais filhos, um acidente de carro não implica que o motorista passe a andar apenas de ônibus, a violência nem sempre embaça ou anula a vontade de viver. Ficam as lembranças dos danos, mas as vantagens anteriores a eles acabam por se sobrepujar, por serem maiores.

Quanto às metafóricas, essas são cicatrizes humanas, absolutamente individuais e invisíveis, pois que impressas em nossa alma... e a alma, que também é um livro (sempre inédito), da mesma forma tem os seus capítulos, quase sempre em número bem maior que o livro-pele. Pois há aqueles que jamais se feriram fisicamente, o que não significa, em absoluto, que não tenham vivido: apenas guardam para si as tantas aventuras de sua biografia.

Os tais gatos, que um dia se queimaram com água quente, associam a água fria à sua desagradável e dolorosa experiência por não conseguirem perceber que a fumaça que a água quente exala é um indicativo do calor, e apenas essa é a água perigosa. A nossa facilidade em perceber isto nos diferencia dos gatos, porém nossa complexidade reside em dominar as paixões para que o aprendizado pela experiência surta seu efeito. E para não agirmos como os gatos, temos que ter em mente que cada dia, cada pessoa, cada experiência que passa por nós é um balde cheio de água: uns tem fumaça, outros não. Claro que, para piorar, os que não tem fumaça podem eventualmente estar lotados de pedras de gelo, mas... fazer o quê?

Quem sabe possamos dar às cicatrizes metafóricas, aquelas da alma, uma hierarquia, para que nos levem a algum tipo de atitude posterior que possa ser nomeada de aprendizado. Poderíamos chamar as cicatrizes mais leves de “cicatristes”: algumas decepções, algumas injustiças, algum transtorno, algum dano reparável que nos tenha feito pensar e passar a evitar certas condutas, pessoas ou atitudes, mas que não têm o poder de nos fazer encolher num canto e deixar de viver... Porém há as “cicatrozes”: estas, pela profundidade e violência com que foram entalhadas, podem de fato nos levar a atitudes extremas, ao medo e à paralisia. E elas, principalmente se acompanhadas das físicas, são perigosas e requerem auxílio, para que a água fria não se torne, de repente, um vilão que nos transforme em gatos escaldados. Gatos que, por evitar toda e qualquer água, podem morrer de sede.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Cicatrizes.

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