UM SUICIDA PATRIOTA E O FISCAL MANON

Provável que por qualquer outra matéria, ou reportagem, em meus guardados papéis, acha-se um velho jornal, já de páginas amarelecidas. Olha só, quão antigo ele é! É de 1994. Aí, de posse do dito-cujo, leio no Caderno B, p. 2-B, do O POVO (Fortaleza, 14/03/94), precisamente na coluna “Há 50 anos”, o seguinte título: “Pulou do 6º andar do Edifício Diogo”.

A nota policial, em si, dada a rotina desses tipos de tragédia, atualmente, não me teria acordado a atenção, caso não tivesse, de imediato, associado o drama do suicida José a outro caso ocorrido, calculo que na década de 60, e que muito me botou comovido.

Em plena Segunda Guerra (terça-feira, 14/03/1944), e pela manhã, um homem pôs termo à própria vida; no mínimo, de maneira inusitada e patriótica. A notícia diz que ele pulou “envolvido numa bandeira brasileira, dando, na queda, vivas ao Brasil”. Bonito sentimento de nacionalidade, o de José. Bem justificável. Convém recordar que, à época, tropas expedicionárias brasileiras, na Itália, vinham pleiteando e obtendo vitórias contra o nazifacismo.

Está assinalado, também, que o homem era jovem, funcionário da Ceará Light (companhia de luz, de propriedade britânica). Era solteiro e “morava numa guarita, na Praia Formosa, em companhia de um amigo”. A antiga Praia Formosa é, hoje, a famosa Praia de Iracema, reduto de mulheres noturnas, turistas e boêmios.

Agora vejamos o bilhete sucinto que os policiais lhe encontram no bolso: “Valdemar: Pague a Dona Cândida e dê 50 cruzeiros ao J. Demóstenes em Mucuripe do dinheiro do mês de abril. Que Deus tome conta do resto. (a) José Borges Farias”. (Estou sendo fidedigno à transcrição do original, engolindo as vírgulas, ao adjunto “em Mucuripe”).

Sem querer dar palpite premonitório, e já sem pestanejar, eu deduzo daí – desse lacônico bilhete do patriota suicida – três coisas bastante explícitas: 1) mesmo sendo empregado de uma empresa multinacional, José ia morrer preocupado com os destinos do Brasil, na Segunda Guerra Mundial, o que era um sentir muito nobre, nacionalista e bem pertinente; 2) era muito bom pagador, ou, pelo menos, não era velhaco; já que estava mesmo indo embora, então, que o Valdemar ou alguém mais que se lixasse, com a dívida, após o embarque dele, José; e 3) no seu tresloucado gesto (de suicida patriota), José mostrou-se mais honesto e amante do Brasil que os “Anões do Orçamento” – aqueles lá do período de desgoverno dos tucanos – e também sujeito mais pai-d’égua que aquela massinha repugnante de parlamentares do “Mensalão”; enfim, cabra infinitamente mais razoável do que os calhordas da dinheirama na cueca e nas meias.

Penso que foi por aí, nos fins da década de 50, ou no limiar da de 60, noutro caso a muito lamentar, que um fiscal de rendas, o qual atendia por Manon, de Redenção, matou-se, igualmente como fez o José, pulando do Edifício Sul-América, na Praça do Ferreira, bem ali no coração de Fortaleza.

Seu Manon era o meu cúmplice na mania que conservo, até hoje, de escrevinhar em quaisquer papéis. Ele foi quem, ao encontrar-me garatujando num papel de embrulho, e de joelhos, sobre um banquinho, prestou-se a comprar-me lápis, borracha e um caderno – será que ainda existe? – da marca “Avante!”

Início dos anos 50, quando eu era apenas um projeto de gente, embarcado na sua labuta de fiscalização, o desventurado Seu Manon subiu a serra e bateu na vendinha do sítio de meu pai, o Camará. No sítio, surpreendeu-me de joelhos, com a língua estirada de fora, sobre um tamborete baixo, rabiscando coisa nenhuma, em papel de embrulhar, de cor escura, com um toco de lápis à mão.

O fiscal Manon viu aquela arrumação toda, um guri em escrivaninha de improviso, e achou graça no menino magricela, já metido nas funções de escriba, escrevinhando não se sabe o quê. E o que fez Seu Manon? Comprou-me os três acessórios escolares, tudo novinho em folha, ali mesmo no balcão da mercearia. Deu-me todo o material e ainda ensaiou uns estímulos. Por isso, Seu Manon, onde vosmecê estiver, ser-lhe-ei sempre muito grato pelo mino que recebi.

Ao garatujar esta crônica, neste exato instante, em pensamento, e com o coração grosso e os olhos querendo sangrar, rezo prece mui comovida de recomendação à memória e ao altruísmo de Seu Manon, o fiscal de rendas de Redenção; e também à alminha verde-amarela de José, ex-habitante da velha Praia Formosa, faz, já hoje, em 2010, exatos 66 anos que ele se foi. E, como desejava o José, Deus que os assessore, a ambos. Sempre.

Fort., 24/03/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 24/03/2010
Reeditado em 13/01/2019
Código do texto: T2156293
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